Illiers-Combray, na França, é um passeio pelas inspirações de Proust

A duas horas de Paris, vilarejo guarda cenários de um dos mais importantes romances do século 20

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Illiers-Combray (França)

A madeleine não tem nada de excepcional. Seus ingredientes são prosaicos, coisas como ovo, farinha e manteiga. Em Illiers-Combray, no entanto, esse bolinho tem o simbolismo de uma relíquia.

O simpático vilarejo francês de Illiers-Combray foi uma das inspirações de Marcel Proust para escrever "Em Busca do Tempo Perdido", o grande romance do começo do século 20. A madeleine está no centro desse catatau de sete longos volumes e centenas de personagens. É seu sabor que faz o narrador se lembrar do passado e, a partir disso, contar sua história.

Fachada da Igreja Saint-Jacques, em Illiers-Combray, que inspirou a igreja descrita por em "Em Busca do Tempo Perdido". As descrições do autor detalham, por exemplo, as maneiras com que sua torre contrasta com o céu azul do vilarejo.
Fachada da Igreja Saint-Jacques, em Illiers-Combray, que inspirou a igreja descrita por em "Em Busca do Tempo Perdido". As descrições do autor detalham, por exemplo, as maneiras com que sua torre contrasta com o céu azul do vilarejo. - Diogo Bercito / Folhapress

Illiers-Combray não está no roteiro da maior parte dos turistas que vão para a França. Vale o desvio, no entanto, para quem procura destinos inesperados. Os leitores de Proust, em especial, podem se deleitar com a visita a alguns dos cenários mais emblemáticos do livro —e, no ínterim, mergulhar uma madeleine no chá e refletir sobre a incontornável passagem do tempo.

Pouca gente passa por ali. Durante a visita da reportagem, em agosto, não havia nenhum outro visitante. É uma rara oportunidade de estar sozinho, nas férias, e um descanso merecido depois de enfrentar as hordas que flanam pelos pontos turísticos parisienses.

Proust passou parte de sua infância nesse vilarejo, que se chamava somente Illiers. Foi esse lugar que inspirou a cidade fictícia de Combray, cenário do primeiro volume do livro, publicado em 1913. O impacto da obra foi tamanho que, em 1971, autoridades locais decidiram rebatizar o lugarejo como Illiers-Combray em homenagem ao autor.

Não era para menos. "Em Busca do Tempo Perdido" tem a reputação, não desmerecida, de ser longo e detalhado demais. Mas é também um estudo de fôlego sobre a natureza da memória, do esquecimento e da formação do indivíduo. A narrativa, que bebe da vida do próprio autor, é um dos textos definitivos sobre a belle époque parisiense.

Illiers-Combray está a sudoeste de Paris, na região de Eure-et-Loir. O jeito mais fácil de chegar é de carro. Vindo da capital, o caminho leva em torno de 90 minutos. Existe a opção do trem, também, fazendo uma baldeação em Chartres — nesse caso, o trajeto dura mais de duas horas e precisa de mais planejamento. Diversas rotas de ciclismo passam por ali, caso alguém queira aproveitar para se exercitar.

A primeira coisa que aparece, no horizonte, é o campanário da Igreja Saint-Jacques, do fim do século 15. Foi construída por um cavaleiro que lutou ao lado de Joana D’Arc. Mesmo em um país repleto de templos medievais, é uma igreja excepcional, com um intrincado e inesperado telhado de madeira. O chão desnivelado e as paredes descascadas dão um ar de real, raro hoje em dia.

Essa igreja inspirou a de Combray, no livro de Proust. As descrições de sua construção estão entre as mais eloquentes da obra. Proust detalha, por exemplo, as maneiras com que sua torre contrasta com o céu azul do vilarejo. Fala também das missas, a que assistiu. Seu assento estofado, aliás, está preservado — fica do lado esquerdo de quem olha para o altar, indicado por uma placa.

Do outro lado da rua está o restaurante La Madeleine d’Illiers, um dos únicos do povoado. Uma refeição com entrada, prato principal e sobremesa custa cerca de 25 euros (R$ 135). Seria um desperdício, é claro, não pedir uma madeleine. Retratos de Proust observam atentos, na parede.

Também próxima à igreja está uma estátua de Proust quando criança. É um rapaz simpático e pensativo, com cara de quem adivinha que vai revolucionar a literatura. Os moradores locais provavelmente não julgam quem se senta no banco para tirar uma foto com o futuro autor. Tem que ser algo comum.

O ponto-alto da visita talvez seja a casa da tia de Proust, Elisabeth Amiot, que empresta traços à personagem fictícia Léonie. O lugar foi transformado em um museu, reunindo objetos do autor, como sua cama e alguns de seus manuscritos. Não é nem preciso ter lido o romance para se interessar. É uma casa do fim do século 19 preservada em uma vila francesa —uma valiosa viagem no tempo.

Nos limites do povoado, há duas torres cilíndricas de pedra. São as ruínas do castelo do século 11 em torno da qual Illiers se desenvolveu na Idade Média. Os moradores saquearam o restante da construção no século 19 e usaram o material para construir suas casas morro acima. Há também residências mais antigas. Algumas delas remontam ao século 16, com o estilo conhecido como "pan de bois", marcado por vigas de madeira entrelaçadas na fachada.

Para encerrar o passeio, há o jardim Pré Catelan. Foi construído pelo tio de Proust, Jules Amiot, um rico comerciante. Jules tinha passado um tempo na Argélia, e incorporou elementos do norte da África no traçado. Quem leu "Em Busca do Tempo Perdido" vai entender sua importância. É o "caminho de Swann", que dá nome ao primeiro livro.

Proust baseou nesse lugar as descrições das caminhadas de seu protagonista, fundamentais ao enredo. Estão ali, inclusive, os arbustos de roseira branca —aubépine, em francês— que tanto impactam o narrador. As folhas secas desta planta dão um bom souvenir, para deixar entre as páginas de um livro de Proust. É pelo menos mais tocante do que os lápis vendidos no museu, com frases do romance.

Há outros pontos interessantes no vilarejo, a depender da duração da visita, que de todo modo não leva mais do que um dia. Um deles é a ponte de pedra de 1806 que aparece no romance como "Ponte Velha", por exemplo, além do cemitério local, onde os tios de Proust descansam. Nada supera, porém, a madeleine. É o que conecta o vilarejo, o autor, o livro e o leitor, em um milagre da literatura.

PROUST EM PARIS

Onde encontrar o escritor na capital francesa

  • CARNAVALET

    Este museu, que conta a história de Paris, dedica uma sala inteira a Proust. É uma montagem emocionante com objetos de seu cotidiano, como sua cama e seu casaco.

  • PÈRE LACHAISE

    Este cemitério, onde estão tantos outros ícones culturais, guarda o túmulo de Proust. É um pouco decepcionante, porém: é uma pedra negra com o nome do escritor.

  • APARTAMENTO

    Proust morou em diversos pontos da cidade. No bulevar Haussmann, 102, há uma plaquinha indicando que foi uma das residências dele. Mas não é possível entrar.

  • BEBIDA

    Sugestão heterodoxa para fechar a noite: o bar Chateau D'Eau (rua Chateau D'Eau, 67) serve um shot chamado “madeleine”. Tem o surpreendente sabor do bolinho.

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