Norte da Argentina tem montanhas coloridas e estradas cênicas

Mudanças dramáticas de paisagem acompanham o viajante entre Salta e as lindas Cafayate, Cachi e Humahuaca

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Paulo Vieira
Salta (Argentina)

Crise é algo que jamais sai de moda na Argentina, mas passam-se os anos e Buenos Aires segue a encantar os brasileiros. Pudera: calçadas perfeitas, harmonia arquitetônica, limite de altura decente de prédios, quarteirões precisamente simétricos, numeração de ruas judiciosa, jardins cuidados, croissants bons e baratos. Uma capital europeia, como dizem, com a vantagem de ter taxistas loquazes, simpáticos, e que você paga em peso. Tudo o que cidade alguma do Brasil jamais ostentou.

Posto isso, talvez seja hora de deslocar o protagonismo da capital para outros rincões da Argentina.

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Cafayate, na província de Salta, no norte da Argentina - Visit Argentina/Divulgação

A Argentina é belíssima e tem culturas muito diferentes e particulares em suas diferentes regiões. Salta e Jujuy, dois estados vizinhos do extremo norte do país, respiram a cultura andina e o legado inca, que também chegou ali. Embora ainda não sejam os Andes, as áreas próximas a Salta e San Salvador de Jujuy, suas capitais, são montanhosas, com alguns lugares acima dos 4 mil metros de altitude.

Sol, céu azul e montanhas de muitas cores, com tons de verdes e vermelhos impressionantes, acompanham o viajante ao longo das estradas que cruzam os estados.

Rumo norte, em direção à fronteira com a Bolívia, o domínio é o da quebrada de Humahuaca, patrimônio mundial segundo a Unesco desde 2003 pela importância como área de passagem e povoamento que remonta a 10 mil anos.

Mirante Tres Cruces em Cafayate, província de Salta, Argentina - Clauber Larre/Folhapress

Perto do que a cerca, Salta, a principal cidade da região, é uma base simpática, de trânsito caótico e ao menos uma atração "blockbuster", o Museu de Arqueologia de Alta Montanha, que exibe, em rodízio, os "niños de Salta", múmias de três crianças incas descobertas em 1999 no cume do vulcão Llullaillaco, a 7.000 metros de altitude.

Os incas sacrificavam crianças, é sabido, mas vê-las ali perfeitamente preservadas –por causa do frio, da baixa umidade e do ar rarefeito– é tão espantoso quanto descobrir que era possível viver àquela altitude. Os incas acreditavam num plano não terreno, mas é difícil engolir que os jovens dignitários desse mundo o aguardavam com tranquilidade e resignação.

Para quem tem prazer em dirigir, a ideia de fazer uma excursão em van desde Salta (a partir de R$ 100 por dia, por pessoa) para as gemas da região, Cafayate, Cachi e Purmamarca, é um disparate.

Diversas atrações até esses lugares estão nas estradas, rotas cênicas impressionantes, e que, não por acaso, atraem enxames de motociclistas. Para Cafayate, por exemplo, famosa por seus vinhos brancos secos e doces de altitude, toma-se a RN (ruta nacional) 68, que segue junto ao rio das Conchas e atravessa outra quebrada, também das Conchas, nome dado pela existência desses registros marinhos de eras anteriores ali.

Como caprichosos escultores, vento, erosão e chuva criaram formações notáveis à beira da estrada. Sucintamente, há a forma de um navio encalhado, apropriadamente chamado de Titanic; os castelos; o sapo; o obelisco.

Também vale muito estacionar o carro para conhecer o abismo da Garganta do Diabo e, em outra parada, a acústica espetacular do Anfiteatro –aqui quero crer que todos os turistas presentes naquela manhã de sábado reconheceram de imediato minha versão trôpega de "Garota de Ipanema", assobiada e amplificada.

Há ainda no caminho a ponte utilizada como locação do filme de episódios "Relatos Selvagens", de Damián Szifron, na historieta em que dois motoristas se engalfinham de maneira bisonha, como se participassem de uma luta de Telecatch que deu ruim.

Nevado de Cachi

O caminho para Cachi, vilarejo lindamente bucólico à sombra do nevado de mesmo nome, de 6 380 metros, é ainda mais impressionante.

Partindo de Salta, o início da rota é o mesmo de Cafayate, rumo sul, mas toma-se uma saída da 68 em Carril, para ganhar a RP (ruta provincial) 33, que acompanha o rio Chicoana. O que vem a seguir é um mix de geografias, da yunga (floresta) à puna (planalto árido de altitude).

A mata copiosa demora para ser vencida, como se estivéssemos atravessando a Serra do Mar. Há até mesmo um trecho da estrada, por volta do quilômetro 22, que se assemelha ao túnel do Joá, no Rio, com uma pista (estreitíssima) se sobrepondo à outra.

Trata-se de um aperitivo para a Costa de Obispo e sua sequência de curvas muito fechadas, na ascensão para a puna, em que a neblina e um pavimento de rípio (cascalho) acompanham o viajante.

Como se não fosse suficiente, o que logo se descortina é uma vista quase ilimitada de um deserto de grandes cactus, os cardones, que são preservados num parque nacional, o Los Cardones.

Ao fundo, o Nevado de Cachi. É aqui a famosa reta de Tin-Tin, aplainada sobre um velho caminho inca, de cerca de 18 quilômetros a 3 000 metros de altitude. A vontade de finalmente pisar fundo no acelerador faz a longa extensão da Tin-Tin parecer o caminho para a padaria.

Purmamarca e Humahuaca

As estradas que conectam Salta a Humahuaca, ao norte de San Salvador de Jujuy, conseguem ser tão ou ainda mais especiais que as rotas para Cachi e Cafayate. ]

A yunga volta a aparecer na RN 9, com pista mais estreita que aquela para Cachi, exigindo atenção do motorista, que vai reencontrar a puna em Volcán, 130 quilômetros a norte de Salta. Purmamarca, a cidade a seguir, pede alguns dias de parada, seja pelo prosaico centro histórico, com suas casas de adobe pintadas com genial simplicidade, seja pela estrutura turística, com feira de artesanato diária e pousadas-butique.

A poucos passos do centrinho fica notável microcosmo do que é toda a região. O Paseo Los Colorados concentra em não mais de três quilômetros formações de montanhas coloridas, cânions e mais cardones. Aqui fica o famoso Cerro de los Siete Colores, mas é fácil perder a conta.

A vontade de nunca mais tocar num volante é grande, mas a menos de 70 quilômetros a oeste está Salinas Grandes, o deserto de sal que emula, sem muita pretensão, o Salar de Uyuni boliviano.

Guias da etnia local levam pequenos grupos de turistas às milhares de piscinas rasas em que o sal é explorado comercialmente e não se furtam a tirar fotos dos clientes, sugerindo situações em que a perspectiva distorce os planos, fazendo com que a pessoa do primeiro pareça tremendamente maior que o companheiro lá atrás.

Há ainda Humahuaca, cidade que ostenta em seu centro histórico um calçamento que lembra vagamente o de Paraty e que serve de base para conhecer as Serranias del Hornocal, o conjunto assombrosamente simétrico de montanhas de –se é que alguém contou– 14 cores.

Se a conta havia sido perdida em Purmamarca, aqui a coisa complica ainda mais. A mais de 4 mil metros de altitude, é possível contemplar o conjunto de longe, num caminho acessível para carros comuns.

O passeio é rápido, pois o vento, o frio e a falta de outros atrativos intimidam, mas Humahuaca lá embaixo convida à estada. Os restaurantes são bastante simples, mas a comida típica andina, muito baseada no milho, na quinoa e na carne de lhama, menos gordurosa do que a bovina, é saborosa e certamente oferece dieta bem equilibrada.

No mais, como cansar da humita, espécie de pamonha salgada que pode ser envelopada pelas folhas do milho ou servida como creme, às vezes misturada com carne?

O melhor, contudo, está nas peñas, em que a animação da música tradicional andina deve surpreender quem só a identifica com "El Cóndor Pasa". Difícil ficar parado quando os conjuntos mirrados de violão e flauta executam "El Humahuaqueño", o hino carnavalesco da quebrada, envolvente o suficiente para merecer uma versão de Roberto Carlos em seu disco de sucessos em espanhol de 1976.

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