Frederico Vasconcelos

Interesse Público

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Descrição de chapéu Folhajus

Uber reproduz antigas relações servis, afirma desembargador

Motorista teve conta bloqueada; Código de Conduta não foi cumprido, diz empresa

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Ao julgar apelação de um motorista que foi descredenciado unilateralmente da plataforma de aplicativos Uber, sem direito de defesa, um magistrado identificou nessa prática resquícios das antigas formas de exploração dos escravos urbanos.

"Pretender auferir ganhos sem assumir responsabilidades, relegando-a ao prestador de serviço, em relação subordinada de trabalho, remete não aos padrões contemporâneos de civilização, mas ao passado triste de relações servis, de que foram exemplo, em nossa história, os chamados ‘escravos de ganho’, no meio ambiente urbano", votou o desembargador Alfredo Attié, do Tribunal de Justiça de São Paulo. (*)

Desembargador Alfredo Attié e detalhe de pintura com senhora conduzida por escravos em uma cadeirinha de arruar
Desembargador Alfredo Attié, do TJ-SP, e detalhe de obra do pintor Carlos Julião - APD/Divulgação e BNDigital/Reprodução

Maycom Henrique Machado, de Bauru (SP), alegou à Justiça que, após exercer durante um ano o trabalho de motorista cadastrado, foi descredenciado da plataforma de aplicativos da Uber do Brasil Tecnologia Ltda. sem qualquer comunicação ou justificativa prévia.

Machado afirmou que teve o seu acesso ao aplicativo bloqueado, passando por diversas dificuldades financeiras desde então.

A Uber confirmou nos autos o descredenciamento unilateral em razão de uma reclamação de usuário, que teria ficado inseguro com erros de percurso. Também teria pesado na decisão da empresa a existência de duplicidade de contas.

Na primeira instância, o juízo entendeu que "embora a avaliação do autor no geral seja satisfatória, basta para o descumprimento dos termos do uso, a ocorrência de um comentário negativo".

Attié entendeu que houve abuso do direito e violação à boa-fé objetiva. O autor comprovou ter ótimas avaliações, registrou. "A ré não trouxe qualquer prova a justificar a razoabilidade da exclusão do autor, como, por exemplo, a própria rota realizada e a sua duração ou maiores detalhes do relato do usuário."

"Mero equívoco de rota, episódio ocorrido única vez no contrato, sem outros elementos de prova que, por si só, não justifica a exclusão definitiva do motorista, embora possa autorizar a adoção de outras medidas mais brandas, especialmente reparadoras, e se observado o direito de defesa", sentenciou.

Relações servis

"Não é porque há tecnologia aparentemente mais avançada que as práticas sociais vão ficar melhores, lamentavelmente. Pode ocorrer o inverso", afirma Attié.

Em seu voto, o desembargador registra como eram essas relações servis:

- Os ‘escravos de ganho’ exerciam um trabalho e repassavam parte de seus ganhos a seus donos, que estipulavam uma cota mínima a lhes ser entregue.

- Diversas atividades podiam ser exercidas, dependendo da habilidade do escravo, dentre elas a de "carregador de cadeirinhas de arruar", transportando pessoas livres pela cidade.

- O escravo gozava de certa autonomia e liberdade de locomoção, podendo residir em uma casa qualquer na cidade e só ir à casa do senhor para pagar a diária ou a remuneração semanal estabelecida.

Segundo Attié, "no Brasil de hoje, resquícios dessas relações permanecem, sob a capa do 'moderno empreendedorismo'. Para o magistrado, "desfazer tais ilusões e restaurar a dignidade das relações humanas é função precípua do processo civilizatório do direito".

O recurso foi parcialmente provido em julgamento realizado no último dia 23, na 27ª Câmara de Direito Privado do TJ-SP. Participaram os desembargadores Alfredo Attié (relator), Daise Fajardo Nogueira Jacot (presidente) e Angela Lopes.

A Câmara decidiu que a empresa deverá reativar a conta no aplicativo, no prazo de 45 dias, e conceder o direito de defesa, podendo aplicar medida mais branda, sob pena de multa diária de R$ 500,00, limitada inicialmente a R$ 10 mil. Foram rejeitados os demais pedidos (lucros cessantes e danos morais).

Outro lado

Em sua defesa, a ré alegou nos autos:

- Ausência de relação de consumo e impossibilidade de inversão do ônus da prova;

- Autonomia da vontade e liberdade de contratar devidamente observadas;

- Justa motivação para a desativação da conta do motorista réu (após verificação de segurança, foi identificado comportamento inadequado do motorista durante as viagens);

- O autor criou diversas outras contas, o que é vedado pela plataforma;

- O Código de Conduta da Uber autoriza a desativação do autor;

- Não comprovação dos lucros cessantes, até porque a ação foi ajuizada mais de um ano após a desativação.

(*) Apelação Cível N.º 1020613-73.2021.8.26.0071

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