Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

'2001 - Uma Odisseia no Espaço'

DE SÃO PAULO

Com a minha filha no colo, sentado no chão da sala, leio um livro. "Leio" é maneira de dizer: ela vira as páginas aleatoriamente, vai pousando o indicador nas figuras e eu fico falando "bola", "avô", "au-au", "pantufa", "astronauta", "isso eu não sei o que é, filhota, parece uma nuvem, mas talvez seja um ovo frito".

Enquanto "lemos", bebo uma água direto da garrafinha e, já acostumado aos pequenos atos de vandalismo a que uma criança de um ano se dedica –basicamente, arremessar ao chão todo e qualquer objeto que consiga agarrar, com o intuito estritamente científico de analisar as consequências físicas e psicossociais do impacto com o solo–, depois de cada gole atarraxo a tampa vermelha na garrafa.

Não demora para que ela se canse da "bola", do "avô", do "au-au", da "pantufa", do "astronauta" –e do que, desconfio agora, seja uma ovelha voadora– para se vidrar na tampinha. Que coisa incrível, diz seu olhar, uma hora isso tá na garrafa, outra hora na sua mão, como gruda, como desgruda, posso tentar?

Termino a água num gole e vou tampá-la, mas minha filha é mais rápida: arranca a garrafa da minha mão direita, a tampa da esquerda e engatinha até o meio da sala. Ela olha a tampa, olha a garrafa e olha pra mim, com o mesmo entusiasmo que me arrebataria numa final de Copa: vai começar o grande desafio da tampa de rosca.

Ela segura a garrafa na diagonal e tenta encaixar a tampa. A tampa cai: uma, duas, três vezes. Na quarta, ela percebe que há algo errado. Suspira. Coloca a tampa de lado e, com as duas mãos, tenta deixar a garrafa de pé, no chão. Não é fácil. A gravidade é sua inimiga. (Talvez a maior de todas –empatada com a escuridão, à frente do espinafre.) Cada vez que a garrafa tomba, ela dá um gritinho de ódio, mas não desiste. Até que, lá pela 15ª tentativa, ela consegue. A garrafa está ali, parada no meio do tapete de sisal como o monolito no deserto em "2001 - Uma Odisseia no Espaço". Ela me olha. Sabe que o jogo não está ganho, que o mais perigoso vem a seguir, mas não demonstra temor.

Ela pega a tampinha ao seu lado, vai levando em direção à garrafa, e tudo, a partir daí, é em câmera lenta. Em algum lugar, toca "Assim Falou Zaratustra". A tampa roça a boca da garrafa. A garrafa balança, mas não cai. Dum-dum-dum-dum-dum-dum, reverberam os tímpanos. Ela levanta um pouco a tampa. Tenta de novo. Olha pra mim. Tchanaaam, explodem os metais. Não sei que cara fazer. Não quero pressioná-la para o sucesso nem, com a minha ansiedade, condená-la ao fracasso. (Sutis são os dilemas da paternidade.) Finalmente, ela solta a tampa. A tampa fica em cima da garrafa. Meio tortinha, não rosqueada, mas fica. Tchanaaaaaam. Ela bate palmas e ri. Eu aplaudo de volta a pequena gênia, futura arquiteta, cientista, medalha Fields, ouro nas barras paralelas, "olha só o que você conseguiu!", digo, com os olhos marejados. Penso em guardar a garrafa, em banhá-la em cobre, colocá-la no alto da estante, mas minha filha tem outros planos: com um tapão, lança longe garrafa e tampa, engatinha pra perto de mim e fica batendo o dedinho no livro, aberto sobre o tapete; "bola", "avô", "au-au", "pantufa", "astronauta", "ovo? Ou será uma ovelha?".

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