Antonio Prata

Escritor e roteirista, autor de "Por quem as panelas batem"

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Antonio Prata

Um ganso novo, bem emplumado

DE SÃO PAULO

Pudibundo leitor, já vou logo avisando: o assunto aqui, hoje, é cocô. Sim, cocô. Minha mulher bem que tentou me dissuadir: "Antonio, você fica escrevendo bobagem, depois ninguém mais te leva a sério".

Bobagem? Einstein fazia cocô. Angela Merkel faz cocô. Há 2.500 anos, o solo em que florescia o pensamento ocidental era adubado por Sócrates, Aristóteles e Platão. Ora, bolas, carambolas: falemos sobre cocô.

Freud afirmou que o cocô é a primeira obra de um ser humano. Bem pequenininha, a criança repara que o cocô gera certa comoção social: adultos mudam de expressão, há movimentação pela sala, alguém a leva pro quarto e troca sua fralda.

Os meninos que mal sentem vontade e já vão logo se aliviando serão os futuros perdulários, os que comem a calda antes do sorvete e perdem as tampas de todas as "Bics". Já os que esperam um bom quorum, os que seguram até, digamos, o meio do jantar, serão os econômicos, os que têm a biblioteca organizada por ordem alfabética com a lista atualizada no Excel.

A sociologia também se ocupou do cocô. Em "O Processo Civilizador", Norbert Elias mostra, com elegância e erudição, como a decadência da nobreza guerreira e o surgimento da sociedade cortesã, a partir do século 15, mudaram a relação da humanidade com o cocô. (E também com o xixi, o pum e os arrotos, mas o assunto aqui, hoje, é cocô).

Na literatura, o clássico que mais versa sobre o cocô é provavelmente "Gargântua e Pantagruel", do Rabelais, com um capítulo inteiramente dedicado às formas de se limpar. Não vou entrar em detalhes, só digo que o método mais elogiado envolve "um ganso novo, bem emplumado".

Numa das primeiras telas do Miró, "A Fazenda", há, no centro de uma paisagem rural, um menininho fazendo cocô. Trata-se do "Caganer", uma figura importante do folclore catalão, que representa a fertilidade e a ligação do homem com a terra.

Salvador Dalí, em seu "Diário de um Gênio" faz descrições minuciosas dos próprios cocôs, os compara aos chifres dos rinocerontes e menciona algo sobre o cone ser a forma preferida de Deus –mas
isso, provavelmente, diz mais sobre o cocô do Dalí do que sobre as predileções de Javé.

Às vezes, quando a ressaca ou a melancolia removem dos meus olhos o "insulfilm" da normalidade, encaro a multidão num cruzamento e penso: "Todos esses fazem cocô. Todo dia. Passai, passai e defecai em paz, pobres mortais, até o dia em que não defecardes mais..."

Às vezes, no aeroporto, quando cinco aeromoças da KLM atravessam meu caminho sem me dirigir sequer o branco dos seus olhos, as imagino na privada e quase consigo me proteger de suas desoladoras belezas.

Às vezes, penso: qual será a velocidade com que sai o cocô? E penso: entre os 7 bilhões de seres humanos sobre a Terra, há sem dúvida um cujo cocô é o mais rápido de todos. Quem será esse sujeito, sentado sobre a própria glória, sem saber que é um campeão?

Viu, pudibundo leitor, como o cocô pode ser instrutivo, cômico, triste, lírico, até? Não? Achou tudo isso uma grande bobagem? Ora, não se enfeze, é fácil se vingar de um cronista: basta atear fogo às suas palavras ou –vingança das vinganças!– dar ao fruto do seu trabalho o mesmo fim que Gargântua daria a "um ganso novo, bem emplumado".

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