Nina Horta

Escritora e colunista de gastronomia, formada em educação pela USP.

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Nina Horta

A vingança dos gulosos

Crédito: Rogerio Canella/Folhapress SAO PAULO 14-01-2013. GUIA DA FOLHA. Restaurante AMICI no Itaim. Picadinho com arroz e feijao farofa de banana pastel de queijo e ovo de codorna frito. foto: Rogerio Canella/Folhapress

Quem não conhece o "enjoado" para comer? "Ah, arroz assim não como, só se for embaixo do feijão. Abacate, odeio! Alho nem pensar. Frango com quiabo e angu, só mineiro mesmo! Goiabada é coisa de caipira. Cogumelo me faz mal, uva dá gases, manjericão é forte demais."

Pois não é que peguei um ensaio sobre ética e o mau comedor estava lá classificado como não ético? Uau... A vingança dos gulosos! Um pouco exagerado, não? Verdade que o implicante não se abre para novos gostos, e sua atitude diante da comida é desrespeitosa e sem dignidade.

Podemos pensar: mas qual é o problema, por que esse autor quer que eu coma miúdos, se detesto? Nos antigos sacrifícios matava-se um animal e serviam-se os miúdos para os deuses.

Alguém tem notícia se algum dia algum Deus comeu meio fígado que seja do seu sacrifício?

Não tem. Nem uma moela. Nem um macio coração. Mas o que se reprova é a nossa atitude, aquela de não comer e não gostar. Um dia podemos ter tido um encontro nada agradável com uma pimenta mexicana. E pronto. Nunca mais comeremos pratos apimentados, descarta-se de uma só vez a Bahia, a Índia e a Tailândia. Perdemos mundos inteiros por causa de uma pimenta. (Aí tenho que dar a mão à palmatória, já quase perdi o céu da boca com comida tailandesa. Teimosa e gulosa, voltei e gostei.)

Cabeça e boca aberta para a comida do outro significam cabeça aberta para a cultura alheia. E a capacidade do prazer para o "enjoado" pode ficar prejudicada vida afora.

Crescemos, ficamos maiores com as experiências vividas e tentar evitá-las é bobagem. O certo seria tentar ver o que o outro enxerga e sente naquele alimento. E acreditem se quiserem, mas estudar um povo e ir experimentando, lendo sobre sua comida, pode fazer toda a diferença.

Ser um "enjoado" nos traz problemas e dá trabalho ao outro. Se alguém se esforçou para fazer um prato especial de sua terra e nos convida para jantar, e você pede um miojo por não gostar de cebola, ui, ui.

Uma coisa que aprendi em restaurante, para não ofender o chef, é disfarçar uma comida que deixei no prato. É uma arte e só com muitos anos de prática sabemos comprimir o resto num compacto quadradinho, com uma folha de alface por cima. Da última vez que fiz isso foi em Manaus, escondi uma tartaruga congelada com gosto de pano de chão, de jeito que nem se estivesse no casco próprio estaria tão bem disfarçada.

Outra coisa que perdemos é o compartilhar —coisa que é básica na comida. Eu me lembro dos olhos risonhos e brilhantes da professora de cozinha indiana Meeta Ravindra quando me deu para cheirar uma pedra de assafétida e gostei do cheiro. "Já é uma indiana", orgulhou-se ela.

É preciso que nos aproximemos da comida compartilhada com a mente aberta, com o maior respeito e cheios de esperança que ela não nos decepcione.

Existem aqueles de paladar afiadíssimo, que realmente vão achar quase tudo ruim. Não importa, o que importa é a atitude de respeito.

Não sei se concordo com o autor que ser enjoado é falta de ética, só sei que alguns nasceram com boca boa e educação esmerada para comer e outros não. Ao te servirem um verme de coco frito com café ou uma bunda de tanajura, você pode tremer, mas tem que respeitar, fazer cara boa e tentar engolir. Cada cozinheiro que te oferece a comida dele está oferecendo não só o alimento, mas todo um conjunto de experiências que são a referência de sua vida e de sua cultura. Temos que ir às trufas, ao pequi e ao coentro com amor, e lembrar que a vingança para com a comida do nosso anfitrião de hoje pode estar próxima.

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