Pablo Ortellado

Professor do curso de gestão de políticas públicas da USP, é doutor em filosofia.

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Pablo Ortellado

Facebook não deveria exercer censura sumária

À medida que ganham relevância como fontes de informação jornalística e espaços onde ocorre o debate político, mídias sociais como o Facebook recebem enorme pressão para serem reguladas.

A empresa reage a essa pressão defendendo a autorregulação, já que a natureza global do seu serviço poderia ser comprometida se tivesse que se adequar a dezenas de regramentos nacionais divergentes. Mas será que a autorregulação privada é mesmo adequada para organizar a esfera pública digital?

De certa maneira toda a circulação de conteúdos políticos e jornalísticos no Facebook é regulada. A empresa tem regras gerais chamadas de "regras da comunidade", que todos os usuários devem aceitar. Como disse um famoso constitucionalista americano, Lawrence Lessig, no meio digital "o código é a lei" –quem estrutura o serviço, cria as suas regras e, portanto, regula.

O Facebook informa seus usuários que "remove discursos de ódio, o que inclui conteúdos que ataquem diretamente as pessoas com base em: raça, etnia, nacionalidade, religião, orientação sexual, gênero ou identidade de gênero ou deficiências graves ou doenças".

Diz ainda que remove "conteúdos que pareçam atacar propositalmente indivíduos privados com a intenção de constrangê-los ou humilhá-los". Como são regras muito gerais, até pouco tempo atrás pouco sabíamos como eram efetivamente aplicadas nos casos concretos.

Em maio deste ano, porém, o jornal inglês "The Guardian" publicou uma série de documentos internos da empresa que foram vazados e que mostram que o Facebook se empenhou em criar regras muito mais elaboradas do que as publicadas para orientar seus censores (chamados de "revisores"). Algumas dessas regras podem ser bastante polêmicas.

Entre outras coisas, o Facebook veta ameaças diretas a figuras públicas e grupos vulneráveis, mas permite ameaças mais graves que não tenham alvos específicos.

Assim, um post como "alguém mate o Trump" será censurado, mas não um post mais perturbador que diga algo como "para quebrar o pescoço de uma vagabunda, assegure-se de aplicar toda pressão no meio da garganta" (os exemplos foram retirados do manual interno do Facebook e podem ser vistos aqui.

Desde a "crise das notícias falsas", quando as mídias sociais foram responsabilizadas pela difusão de boatos e mentiras que teriam ajudado a eleger Donald Trump, Facebook, Twitter e Google têm sido pressionados a censurar ou degradar o desempenho de sites maliciosos que se fazem passar por jornalismo.

Mas antes mesmo das eleições americanas, o Facebook já havia derrubado uma importante página política brasileira, a Revoltados On Line. O grupo, um dos três principais organizadores dos protestos contra a ex-presidente Dilma Rousseff, perdeu a página do Facebook, com seus dois milhões de seguidores, na semana que antecedeu o impeachment.

Num vídeo e depois num perfil publicado pela revista "Piauí", o responsável pela página, Marcello Reis, alega que a supressão da página pelo Facebook foi sumária e que a notificação se restringiu à lacônica informação de que havia desrespeitado as regras da comunidade.

Não é difícil de imaginar que tipo de regras a página -que pregava um punitivismo virulento e odioso- possa ter descumprido. Mas isso não explica por que tantas outras páginas com conteúdo semelhante não foram apagadas, nem justifica o fato de que não tenha tido direito de defesa ou recurso. À medida que o Facebook se torna uma referência inescapável para o debate público, suprimir uma página vai se tornando equivalente a cercear o direito político no ambiente digital.

Mais recentemente, o Facebook sugeriu que poderia alterar seu algoritmo para degradar o desempenho dos sites de notícias falsas.

A empresa nunca explicou direito como identifica um site como sendo de notícias falsas, nem quais sites já foram afetados pela medida mas, no monitoramento do compartilhamento de notícias que fazemos na universidade, pudemos notar claramente que, desde junho deste ano, o site Folha Política (sem relação com a Folha), um dos mais importantes do campo antipetista, teve seu desempenho subitamente degradado. De um dos sites de notícias mais influentes no Facebook, ele passou a ser um site de influência marginal.

De novo, parece razoável que o Facebook tenha entendido que o site propagava "notícias falsas", mas não se entende por que outros sites mais maliciosos e mais influentes não tenham sido afetados pela medida. E como essa medida pode apenas ser inferida, ela não foi noticiada, não pode ser contestada e os seus impactos não estão sendo discutidos pelo público.

Essas regras que regem uma parcela tão importante do debate público não estão sendo definidas por parlamentares eleitos, nem aplicadas por juízes e, como são secretas, não podem nem mesmo ser fiscalizadas ou contestadas.

Para algo como metade dos brasileiros que votam e para a grande maioria dos brasileiros que acompanham os assuntos políticos, quem regulamenta sua segunda fonte de informação, logo depois da TV, é uma empresa privada, com regras detalhadas que não são conhecidas do público, tomando centenas de decisões diárias sobre censura, de maneira sumária, sem recurso e sem o contraditório.

Queremos mesmo esse tipo de regulação para o ambiente digital? Se o Facebook quiser conter as pressões para que seja regulado pelo Estado, sua autorregulação precisa emular cada vez mais a de um ente público, com regras públicas detalhadas, transparência na aplicação e direito de defesa.

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