Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Sem saída

DE SÃO PAULO

Tá na hora de você aquietar, ter marido e filhos ... OU VAI ACABAR SOZINHA E INFELIZ. O certo seria fechar as pernas, mandar um palavrão entre dentes e sair batendo a porta. Mas o espéculo atingiu sua maior abertura e o doutor "família, tradição e propriedade" exclama vitorioso: está tudo rosinha e lindo. Devo ter um quarto brega de criança mimada no lugar do útero.

Ele toma velocidade e aumenta o som. Não tem acostamento, não tem calçada, não tem como fugir. A música proclama em alto sertanejo universitário "O senhor vai voltar, oh pai, ele vai, e vai se regozijar, oh pai, ele vai".

Peço pro taxista baixar um pouco e ele pergunta se tenho algum problema em ouvir o chamado de Deus. Digo que só tenho problema em não ouvir o chamado do meu celular, caso ele toque, pois pode ser meu chefe. Ele me manda deixar "no vibra". Você é malufista? Claro. Todo taxista mala é malufista.

Tenho muitas agulhas nos pés, na batata da perna, na coxa, na virilha, na barriga, nos braços, nas mãos e uma bem no centro da minha testa: os maus pensamentos precisam ter uma porta de saída. Tenho medo de perfurar algum órgão vital então evito, a todo custo, um iminente e intenso espirro. É quando o acupunturista psicanalista especializado em ovário policístico e distúrbios de ansiedade fala bem baixinho no meu ouvido: "Depois quer tomar um negocinho no bar aqui da frente? Tenho pensado tanto em você".

Vou ler mais duas linhas e dormir. E daí que são 11 horas presa aqui dentro? Sim, avião tem cheiro de bafo de frango com sebo de cabeça, mas e daí? E daí que perto da asa faz um barulho macabro? Acho que tô com sono. Olha lá, o Rivotril fazendo um efeitinho maroto. Vou dormir gostosinho. Você tá lendo o quê? Não, homem feio que acha que calça jeans combina com tênis de corrida, por favor, jamais puxe papo comigo! Já puxou. É sobre o Paulo Francis e... eu queria dormir, tá? Não, espera, xeu te contar: tô lendo "51 atitudes essenciais para vencer na vida e na carreira".

Meu carro está preso porque 14 tios foram chegando e parando atrás de mim. Tios esses que já estão bêbados o suficiente pra nunca mais lembrar como se dá uma ré. Tem um único tio sóbrio e ele deixa claro que é a favor de meterem porrada em "maloqueiro que faz passeata" e que mulher que se veste como puta "tá pedindo". Alguém dá uísque batizado com cianureto pra ele, por favor? Minha tia implora com olhos de bearded collie bebê pra eu não botar fogo na família. Algum desavisado comemora: "vamos ver então o filme do casamento da Carolzinha?" Vejo o filme de casamento, as fotos do casamento, as fotos da lua de mel e ainda tenho que parecer algo entre agradecida e admirada.

Prometo nunca mais me aventurar em um "blind date" assim que o rapaz chega. Ele tem a altura de um bom partido de joelhos e anda como se a virilha esquerda odiasse tanto a direita que quisesse muita distância dela. Ao ver que estou entediada com sua saga "minha primeira vez na Europa foi massa" ele resolve mandar logo uma piadota. E então me conta que o apelido "rei" de seu amigo Arthur é porque ele peidava muito. Dai virou "peidorreiro". Depois "dorreiro". Depois "reiro". Até que virou apenas "rei". O espaguete com camarão e abobrinha chega quentinho me avisando que, por ser meia-noite de uma quarta-feira, essa será minha última chance de comer naquele dia. Aturo o amigo do rei. Aturo muita coisa na vida. Viver é sem saída.

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