Pequenos altura
Psicloga parte de questionamentos para transformar as prticas de educao nutricional no pas
Por que aquela pessoa remexe o lixo?
No comeo da dcada de 1970, em um ponto da imponente avenida Paulista, smbolo da cidade de So Paulo, Gisela Maria Bernardes Solymos, ento com 6 anos, tem seu primeiro contato com a desigualdade. De mos dadas com a me, Ivone Bernardes Solymos, viu a desnutrio e a pobreza refletidas em um morador de rua. A menina que sonhava com fazenda, plantaes e criao de animais descobriu naquele momento que comer no to simples como pensava ser.
o comeo de uma vida de questionamentos, em que as respostas para perguntas simples nem sempre atendem nsia de conhecimento da garota o comeo de uma vida de questionamentos, em que as respostas para perguntas simples nem sempre atendem nsia de conhecimento da garota.
Ouvir que bater o bolo apenas de um lado era fundamental para que a massa crescesse a levava mais longe. Que componentes impediam que o doce, aps remexido de todos os lados, ganhasse forma? Era preciso testar para ter a comprovao. "Eu era insuportvel no querer saber o porqu das coisas", garante.
Era a me a explicadora oficial aos questionamentos da garota. Dela, Gisela herdou a alegria e a jovialidade. Do pai, o hngaro Peter Solymos, recebeu uma dose de tristeza. No como a dele, que deixou a terra natal na dcada de 1960, depois da invaso sovitica, em 1956. "Ele tem o corao partido em pedaos, de um povo que foi abandonado [pelas tropas ocidentais, que eram aguardadas pelos hngaros antes da tomada sovitica]. Eu no", diz ela, pensativa.
O discurso sobre as origens do pai e sobre como foi indiretamente afetada pela guerra na Europa e pela desigualdade no Brasil deixa transparecer uma Gisela indignada, inconformada.
Foi com essa essncia de mudana que fez seu primeiro trabalho em uma favela de So Paulo. Com vontade de ajudar, mas sem um plano estruturado, o projeto morreu logo depois. Mas deixou na garota o desejo de transformao. "L nasceu o ideal."
Esse misto de "paixo pelo ser humano" e de questionamentos em tempo integral a levou para o curso de psicologia. Passou na USP (Universidade de So Paulo), poca em que ingressou tambm no movimento Comunho e Libertao, que inclui educao e integrao s misses da Igreja Catlica. "O relacionamento com Deus sempre foi importante."
Leu Freud e Jung. E passou cinco anos em crise durante o curso. Por que a psicologia no consegue explicar a crena em Deus em algo que no seja uma deficincia humana?
Essa uma das perguntas que Gisela no conseguiu responder. Mas manteve a f e a atuao na rea de psicologia.
Ficou por trs anos em uma consultoria organizacional, na qual pulou de estagiria a consultora. At aparecer a oportunidade de voltar para a favela.
Com um grupo de recm-formados e pesquisadores, desbravou comunidades da Vila Mariana (zona sul de So Paulo) -famlias que no so mapeadas nem mesmo no censo realizado pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica)- para um levantamento sobre sade e nutrio. L, nasceu no apenas a metodologia de interveno em sade na comunidade mas tambm o embrio do Cren (Centro de Recuperao e Educao Nutricional).
Diretora-geral da instituio que assiste crianas e adolescentes subnutridos que atendeu a 50 mil pessoas, ela estendeu a rea de atuao de Mirandpolis (zona sul de So Paulo) para a Vila Jacu (zona leste) e Macei. Desenvolveu metodologia que contempla a estatura -e descobriu que os ndices de desnutrio ultrapassam as estatsticas oficiais.
Por que os agentes de sade e os estudantes de medicina no so capacitados para coletar dados antropomtricos e mapear essa populao para que haja trabalho mais intensivo de combate desnutrio?, questiona-se hoje, em mais um ciclo de perguntas que sempre a movem para respostas transformadoras.
Assista
Conhea mais sobre a Cren (Centro de Recuperao e Educao Nutricional)
Quando o centro iniciou sua atuao antes mesmo de sua formalizao, no fim da dcada de 1980, o tema desnutrio infantil era um problema relativamente reconhecido pelas estatsticas oficiais, porm subvalorizado.
Nessa poca, a abordagem de levar equipes de sade para favelas era indita. A criadora do Programa Sade da Famlia, do Ministrio da Sade, fez estgio no Cren e idealizou o programa lanado pelo governo em 1994 a partir dessa experincia.
Outra contribuio pioneira e de alto impacto foi a implantao da mensurao estatura das crianas para diagnstico da desnutrio, at ento inexistente no pas. No incio da dcada de 1990, a medida padro adotada era o baixo peso para estatura (magreza), associado principalmente baixa imunizao, alta prevalncia de infeces e a guerras, contexto comum na frica.
J a baixa estatura para a idade (independentemente do peso) est associada baixa disponibilidade de alimentos, ao analfabetismo materno e baixa renda, cenrio mais prximo da realidade brasileira, conforme o Cren demonstrou por meio de diversos estudos cientficos.
Atualmente, o Ministrio da Sade entende que a desnutrio no Brasil se expressa principalmente pelo no crescimento pleno da criana desnutrida, e o IBGE, a partir de 2008, passou a incluir estatura das crianas em suas pesquisas.
O Cren foi a primeira iniciativa no Brasil a combater a desnutrio infantil com uma equipe de sade integrada interdisciplinarmente dentro de um modelo de centro de educao infantil. Alm do atendimento em sade, comum a outros projetos, no Cren as crianas seguem um processo efetivo de educao adequado sua faixa etria, sendo inseridas em outra escola quando da alta do semi-internato.
Contrariando a tendncia de medicar, o carro-chefe do centro a educar por meio de um mtodo holstico: no s faz a consulta mas tambm realiza busca ativa com visitas domiciliares e oferece oficinas de capacitao, envolvendo a famlia da criana para um impacto transformador no longo prazo. Outras instituies que trabalham com desnutrio infantil ou o fazem por meio de internao hospitalar -o que traz dificuldade na manuteno do vnculo me-criana internada- ou efetuam atendimento clnico, no educativo.
So vrios os projetos inovadores elaborados pelo Cren. Em 2000, estruturou o projeto Creches, que implantou a educao nutricional em CEIs (Centros de Educao Infantil) em So Paulo, usando metodologia de oficinas prticas. At ento, a creche no se concebia como responsvel por essa dimenso do desenvolvimento da criana e, quando o fazia, fazia-o de modo terico, por meio de aulas e desenhos. As oficinas geravam o contato direto da criana com o alimento, de acordo com sua faixa etria. Esse mtodo atualmente amplamente empregado em CEIs conveniados e municipais, segundo a organizao.
A metodologia de busca ativa de casos nas favelas e consequente acompanhamento dos casos de desnutrio tem sido empregada nas capacitaes de profissionais de sade da rede pblica. A principal inovao nessas capacitaes a superviso em campo.
Outro exemplo da aplicao inovadora do mtodo foi o projeto de protagonismo juvenil realizado no norte de Minas Gerais chamado Eu Aprendi, Eu Ensinei. O trabalho envolveu adolescentes em aes de combate desnutrio em comunidades carentes, realizadas como atividades interdisciplinares dentro do currculo das escolas. Foram envolvidos 11 cidades, 53 escolas, 850 professores e 16 mil alunos. A experincia foi replicada em Alagoas.
Em 2002, em um projeto realizado em parceria com o BNDES, o centro lanou o nico site do pas especializado em desnutrio.
Reconhecido pela Unicef como "centro de excelncia e referncia nacional para desnutrio", o Cren se prepara agora para aplicar seu mtodo e inovar no combate a outro mal crescente nos dias atuais: a obesidade infantil.
Do oramento anual atual de R$ 3,4 milhes, 87% vm de parcerias com o poder pblico na esfera municipal, por meio de convnios com as secretarias de Sade, Educao e Participao e Parceria de So Paulo. O restante divide-se entre doaes de pessoas fsicas e jurdicas e projetos incentivados. Uma pequena parcela (0,38%) origina-se da venda de produtos em bazares.
Embora comum a organizaes sociais da rea da sade, essa concentrao traz consigo riscos inerentes falta de diversificao das fontes de recurso, agravada pela concentrao na esfera municipal, mais voltil em termos de programas de governo -e cuja eleio acontecer em 2012.
Para minimizar tais riscos, a entidade conta com um fundo de reserva que soma atualmente R$ 190 mil.
Principais parceiros: ArcelorMittal, Central Nacional Unimed, EcoRodovias, Fundao AVSI, Fundao Ita Social, Fundao Tide A. Setubal, Instituto Ajinomoto, Instituto Carrefour, Instituto Pr-Vida, Novo Nordisk Brasil, Sabesp, Secretaria Estadual de Assistncia e Desenvolvimento Social, Secretaria Municipal da Educao, Secretaria Municipal de Participao e Parceria (CMDCA e Fumcad) e Secretaria Municipal de Sade.
A atuao do Cren j beneficiou mais de 50 mil pessoas desde seu incio, segundo dados quantitativos e qualitativos devidamente registrados. Em 2011, as duas unidades somam o atendimento a 142 crianas subnutridas, de 0 a 6 anos, em regime de semi-internato, e cerca de 2.000 crianas e adolescentes com subnutrio, sobrepeso e obesidade em regime ambulatorial.
Na Vila Jacu, 60 adolescentes participam de programa que visa a educao cidad, com uso de msica, leitura, teatro e rodas de conversa. No Telecentro de Incluso Digital, 2.363 pessoas esto cadastradas (mais de 60% com menos de 18 anos).
Em relao ao total de atendimentos/procedimentos em 2010, tem-se:
- 3.262 atendimentos comunidade (censo antropomtrico e atendimento multiprofissional);
- 7.326 atendimentos de ambulatrio (mdico, nutricional, social e psicolgico, com crianas e seus familiares);
- 6.346 atendimentos de semi-internato (mdico, nutricional, social e psicolgico, com crianas e seus familiares);
- 670 atendimentos domiciliares;
- 1.167 atendimentos de grupo;
- 62.615 procedimentos de enfermagem;
- 82.358 refeies servidas.
Os perfis variam de uma unidade a outra. Na Vila Mirandpolis, localizada em regio central, as famlias tm renda familiar acima de trs salrios mnimos, 30% apresentam problemas com lcool e outras drogas ou conflito com a lei e 68% das mes contam com presena do companheiro em casa. A maioria delas tem ensino mdio completo e engravidou com idade entre 19 e 22 anos. Na Vila Jacu, na periferia da zona leste, esses indicadores mudam respectivamente para um a trs salrios, 7% e 84%. Grande parte das mes tem ensino fundamental incompleto e teve filho na faixa etria de 23 a 35 anos.
O forte embasamento cientfico -a organizao surgiu de um projeto acadmico da Unifesp, com quem mantm vnculo direto- refletido em um mtodo exemplar de mensurao de impacto, tanto quantitativo como qualitativo. Semanalmente, realizam-se estudos de caso para acompanhamentos individuais. Os resultados globais do servio so sistematizados e analisados anualmente em vrias reunies por toda a equipe tcnica. Um comit tcnico se rene mensalmente com responsveis de cada rea, com a participao de docentes da Unifesp, para discusso de metodologia e resultados parciais nas diferentes reas de atuao. Os resultados tambm so avaliados por meio de pesquisas cientficas, tendo originado dezenas de publicaes cientficas em revistas nacionais e internacionais.
Agora a instituio trabalha para a estruturao do pronturio eletrnico, a fim de integrar as reas de nutrio, pediatria e servio social, o que tambm facilitar a elaborao de relatrios de prestao de contas.
Os relatrios avaliam o desempenho de todas as reas, mas com foco nos impactos nutricional e mdico das atuaes. As crianas do hospital-dia obtm recuperao nutricional comprovada, com real ganho de msculos e ossos. H recuperao de anemia, controle de infeces e melhora no desenvolvimento motor e cognitivo.
O percentual observado de melhora do IMC (ndice de massa corporal) nos casos de excesso de peso vo de 64% a 79%, variando por faixa etria, tempo de tratamento e nmero de consultas.
Em pesquisa interna de avaliao dos servios prestados, 89% dos responsveis pelas crianas afirmam ter sentido diferena no atendimento do Cren em relao aos demais servios pblicos que utiliza, sendo a "ateno dada" e a "explicao da conduta e do diagnstico" os principais diferenciais apontados. Para 83%, o atendimento do Cren os ajudou a lidar melhor com algum comportamento do filho (como limites com relao aos horrios para refeies e dormir).
Os benefcios perpassam os ganhos na sade dos atendidos. Como resultados das intervenes registrados, encontram-se mudanas estruturais na famlia, como retorno aos estudos, manuteno dos acompanhamentos psicolgico e social, maior articulao e ateno aos direitos e deveres e colocao no mercado de trabalho. As crianas mudam rotinas e hbitos e adquirem responsabilidade e protagonismo. Os pais fortalecem o vnculo com a comunidade, ganham responsabilidade, mostram maior empenho no tratamento e ressignificam a experincia vivida.
O Cren surgiu como um projeto de extenso da Unifesp sobre desnutrio infantil que ganhou vida independente. Uma vez comprovada a eficincia de sua metodologia, o desafio passou a ser estend-la para um servio ampliado. nesse contexto que foi credenciado e conveniado com a Secretaria Municipal da Sade, tornando-se um centro de referncia para preveno e tratamento de distrbios nutricionais na cidade de So Paulo, sem restrio de rea de abrangncia.
Hoje conta com duas unidades prestadoras de servio -uma na Vila Mirandpolis, na zona sul de So Paulo, e outra na Vila Jacu, zona leste. Mantm ainda uma equipe de campo na periferia de Jundia (SP) e, em parceria com a ONG Associao Nutrir e com recursos do BNDES, implantou outra unidade do Cren em Macei (AL).
As aes de formao profissional para difuso da metodologia de preveno e combate desnutrio, entre leigos e profissionais, permitem que sua atuao se estenda em vrios mbitos, dentro e fora do pas. So vrios os desdobramentos:
- 1997 -assessoria a projeto de combate desnutrio em Itapeva (SP) e a creche em Braslia (DF), em 1999;
- 2000 e 2010 -difuso do mtodo Cren em seminrios e implantao em obras sociais no Mxico (Campeche e Oaxaca);
- 2002 -implantao de centro de recuperao nutricional nos moldes do Cren em creche em Lima (Peru);
- 2003 -capacitao de equipes de entidades sobre mtodo Cren em Tegucigalpa (Honduras);
- 2004 -implantao de ambulatrio de combate desnutrio no Centro de Orientao Famlia, em Salvador (BA), e do projeto Eu Aprendi, Eu Ensinei em 11 municpios no norte de Minas Gerais;
- 2005 e 2009 -estruturao de projetos de combate desnutrio em Les Cayes e Port au Prince (Haiti);
- 2006 -replicao do mtodo de busca ativa e promoo de hbitos de vidas saudveis em creche do Rio de Janeiro;
- 2008 -formao de mdico colombiano contratado da FAO para criar programa de combate desnutrio na Colmbia e capacitao no mtodo de busca ativa a equipes de sade e entidades locais no Jari (PA);
- 2008 e 2010 -capacitao de entidades de assistncia no mtodo Cren em Maputo (Moambique);
- 2009 -implantao do projeto Eu Aprendi, Eu Ensinei em 15 municpios no semirido de Alagoas.
- 2010 -execuo do projeto Trans-Formao, de desenvolvimento de servios educacionais de utilidade pblica voltados para a infncia e a adolescncia na cidade de Belo Horizonte com difuso das metodologias em mbito nacional (Braslia, Macap, Manaus, Petrpolis, Salvador e So Paulo)
Academicamente, a organizao trabalhou em cooperao com instituies em Alagoas, Cear, Minas Gerais, Rio de Janeiro e So Paulo, e internacionalmente com Argentina, EUA, Haiti, Inglaterra, ndia, Itlia, Chile, Mxico, Peru.
O rigor cientfico com que trabalha o Cren desde suas origens possibilitou organizao compilar seus conhecimentos, iniciativas e resultados em documentos como planos de trabalho e plano poltico-pedaggico e em artigos cientficos publicados nacional e internacionalmente.
Conforme visto no item anterior, o mtodo desenvolvido pelo Cren j foi replicado para dezenas de cidades no Brasil e no mundo. Isso se deve sobretudo ao fato de os processos estarem adequadamente sistematizados.
Em 2002, com recursos do BNDES, o centro lanou a coleo e o portal Vencendo a Desnutrio, que sistematizou todo o processo de diagnstico e interveno na desnutrio primria, nos vrios mbitos possveis. Em portugus e ingls, o site o nico especializado em desnutrio (www.desnutricao.org.br) no pas.
A coleo composta de sete livros, 17 flderes e um vdeo, disponveis para download no portal. Os livros foram traduzidos para o espanhol e atualmente um deles est sendo traduzido para o francs com vistas publicao no Haiti. Mais de 10 mil cpias dos livros foram impressos e distribudos e um milho de downloads foram feitos no portal.
O Cren tambm desenvolveu, em parceria com a Fundao Avsi, da Itlia, um projeto de e-learning com 32 Centros de Educao Infantil em cinco polos (Belo Horizonte, Braslia, Rio de Janeiro, Salvador e So Paulo). A Avsi o maior apoiador nesse processo e investe na cooperao tcnica para a descrio da metodologia do Cren com o objetivo de difundi-la como referncia para seus projetos em todo o mundo.
Consciente de que o tema desnutrio infantil necessita do poder pblico para ser trabalhado em escala sistmica, a empreendedora social tem em seu currculo longo histrico de influncia em polticas pblicas e trabalho com parcerias governamentais nas trs esferas por meio do Cren.
A primeira parceria se d por meio de contratos de assessoria e convnios de prestao de servios. A entidade um centro de referncia em nutrio para crianas e adolescentes. Tambm realiza capacitao do PSF (Programa de Sade da Famlia) para diagnstico e interveno de distrbios nutricionais primrios. Em So Paulo, efetua convnios via Fumcad (Fundo Municipal dos Direitos da Criana e do Adolescente), pela Secretaria de Participaes e Parcerias, para implantao e manuteno de um telecentro em Vila Jacu. Em Macei, oferece assessoria para avaliao do Programa de Distribuio do Leite no Estado de Alagoas.
Outro canal importante so as discusses tcnicas promovidas pelo IEA-USP (Instituto de Estudos Avanados), pelo qual foi convidado a lanar o grupo de Nutrio e Pobreza com o objetivo de discutir metodologias e polticas pblicas de combate desnutrio e pobreza. Entre as atividades do grupo destacam-se a realizao de um simpsio, trs oficinas e duas conferncias, alm da participao em conferncia do Consea (Conselho Nacional de Segurana Alimentar e Nutricional) e em sesso do Comit Permanente de Nutrio da ONU e da publicao de vrios artigos. Em todos os eventos, membros da universidade, da sociedade civil e do governo foram convidados, visando ao debate sobre programas e polticas pblicas.
Desde 2000, o Cren debate com o MDS (Ministrio do Desenvolvimento Social) a necessidade de realizar busca ativa das crianas desnutridas nas regies mais pobres do Brasil, incluindo o indicador estatura/idade nas avaliaes. Aps os seminrios de 2005 ("Diagnstico e Solues dos Problemas Alimentares e Nutricionais no Brasil: Formando Parcerias") e de 2006 ("Educao para a Nutrio e para o Combate Pobreza") realizados pelo IEA, o governo federal lanou editais para a realizao de avaliaes nutricionais no Nordeste, especialmente no semirido, e para a reformulao de toda a merenda escolar. Incluiu-se oferecimento de alimentos a estudantes de ensino mdio, problema que havia sido evidenciado pelo Cren com o projeto Eu Aprendi, Eu Ensinei, em escolas de ensino mdio no norte de Minas Gerais. Hoje reconhecida pelo governo federal a necessidade de mensurar estatura para identificar a desnutrio primria no Brasil.
O centro conta com vrios outros exemplos de impacto em polticas pblicas em sua rea de atuao:
- em 2002, lanou o site e a coleo Vencendo a Desnutrio, com recurso do BNDES. O projeto foi na poca o maior financiamento a fundo perdido oferecido a uma ONG, por "possuir a melhor metodologia e condies tcnicas e de gesto";
- por meio de um curso de especializao ministrado pelo Cren e certificado pela Unifesp, foi proposto a gestores de sade fazer censo antropomtrico nas campanhas de vacinao. O municpio de Jandira (Grande So Paulo) aplicou o mtodo em 1.600 crianas e adolescentes, descobrindo altssimos nveis de desnutrio. A ao-piloto fez com que o prefeito estruturasse todo um projeto de combate desnutrio na cidade que, por ter sido lanado no mesmo ano do programa Fome Zero, recebeu na cidade o nome de Desnutrio Zero;
- conforme antes mencionado, a criadora do PSF (Programa Sade da Famlia) fez estgio no Cren e, segundo a organizao, idealizou o programa a partir dessa experincia;
- em So Paulo, foi realizado em 2000 o projeto Creches, que implantou a educao nutricional em centros de educao infantil, usando a metodologia de oficinas prticas, hoje amplamente empregado em CEIs conveniados e municipais.
O foco atual de atuao para que a vigilncia nutricional seja efetivamente implantada no mbito do PSF e que se estenda a crianas at seis anos de idade.
A atuao do Cren baseada em cinco princpios fundamentais. Mais do que filosofias ou ideologias, so aplicados em todas as suas atividades e repetidos frequentemente pela empreendedora social. So eles:
1 - centralidade da pessoa
Todo atendimento no Cren tem a inteno de criar uma cultura de responsabilidade e no deseja apenas agir "sobre" as estruturas carentes. Para isso acontecer, aponta a empreendedora social, devem-se manter vivos os anseios fundamentais e inalienveis, tambm chamados de significado ltimo da vida de cada pessoa, a raiz de suas escolhas e da busca da felicidade pessoal.
O foco fundamental a pessoa como motor de um processo de desenvolvimento. A organizao acredita que, sem estimular a liberdade e a criatividade, no existe desenvolvimento duradouro. Mesmo tendo foco na nutrio, parte de uma escuta qualificada e um compartilhamento e endereamento de todas as necessidades da pessoa/famlia, estimulando suas iniciativas e capacidade de resposta s dificuldades. As aes educativas utilizam-se de tcnicas acessveis e correspondentes a seus desejos e necessidades (das crianas aos adultos).
2 - valorizao da liberdade
O centro entende a liberdade como "a energia vital que d sentido vida e que abre o ser humano possibilidade de lutar e se mover positivamente em qualquer circunstncia". Assim, tendo em vista uma interveno que no queira ser tutelar e assistencialista e provocar apenas dependncia, deve procurar valorizar a liberdade das pessoas, o que se d no Cren por meio dos trs ltimos princpios fundamentais.
3 - partir do patrimnio presente (positivo) na realidade em que se quer intervir
Antes de partir do que falta ou da vulnerabilidade da comunidade a ser atendida, o Cren busca conhecer o que j existe -quais as estratgias de sobrevivncia que as pessoas atendidas tm realizado com relativa eficincia. "Cada pessoa, ainda que seja pobre, representa uma riqueza." A interveno procura valorizar e fortalecer o que as pessoas tm construdo -o tecido social e o conjunto de experincias que constituem o seu patrimnio de vida, fatores que influenciam diretamente o sucesso da interveno no longo prazo e sua efetividade.
4 - "fazer com" -identificar as necessidades, individuar as solues e construir junto com a populao atendida a mudana almejada
A empreendedora social acredita que um projeto "cado do cu" violento porque no conta com a participao de quem deve ser o sujeito da ao e no mero objeto ou ineficaz na medida em que fica restrito somente ao assistencial.
5 - garantir recursos, formao e educao, entre outros fatores, para o desenvolvimento dos corpos intermedirios e construo de parcerias
Realizar um projeto de desenvolvimento significa para a instituio favorecer as possibilidades de agregao e associativismo, reconhecer e valorizar a constituio de corpos sociais intermedirios, como tambm de um tecido social rico de participao e de corresponsabilidade.
Empiricamente, esse mtodo permitiu ao Cren estabelecer um vnculo de confiana e relacionamento estvel com as famlias atendidas no decorrer do tempo, o que at ento era tido como improvvel com grupos populacionais em situao de excluso social -caracterstica das famlias de criana desnutridas. Conquistou a permanncia no tratamento e, como consequncia, a recuperao de estatura dessas crianas, fator considerado impossvel na literatura cientfica nacional e internacional.
As duas unidades do Cren em So Paulo, mais os centros de referncia replicados (como em Macei e no Peru), atendem nas seguintes modalidades:
Atendimento na comunidade: a criana inicialmente atendida na prpria comunidade em parceria com os profissionais do Programa de Sade da Famlia treinados pelo Cren, que fazem censo antropomtrico. As famlias so convidadas a comparecer a um local escolhido por integrantes da comunidade. Nesse encontro verifica-se o carto de vacinao da criana e mensuram-se estatura e peso, orientando a famlia sobre as condies de sade e estado nutricional da criana. Caso a criana (ou o adolescente) apresente quadro de desnutrio ou obesidade exgena, encaminhada para atendimento em ambulatrio. O Cren tambm oferece formao a profissionais, agentes comunitrios e outras pessoas vinculadas comunidade que prestem atendimento a crianas.
Ambulatrio: a criana atendida individualmente em consultas clnicas, nutricionais, psicolgicas e de assistncia social, alm de participar de atividades grupais e atendimento domiciliar, com a presena de educador fsico.
Semi-internato (hospital-dia): oferecido criana desnutrida com at cinco anos. O atendido permanece na instituio de segunda a sexta-feira, das 7:30 s 17:30, separado em grupos de acordo com a faixa etria, visando sua plena recuperao nutricional. Recebe cinco refeies dirias, atendimento em sade e psicologia (quando necessrio) e desenvolve atividades psicopedaggicas (oficinas) de educao nutricional.
As oficinas foram desenvolvidas por pela rea de nutrio com auxlio da pedagogia com o objetivo de melhorar a aceitao de alimentos pelas crianas, possibilitar seu acesso, diminuindo a insegurana alimentar, e ampliar o conhecimento sobre os alimentos e suas preparaes. As receitas so selecionadas por nutricionistas respeitando critrios como manipulao pelas crianas, valor nutricional, alimentos comumente rejeitados por crianas e nvel de dificuldade para preparao da receita.
No desenvolvimento das oficinas as crianas exploram contedos interdisciplinar -linguagem oral e escrita, matemtica, alimentao e cultura geral. Tambm tornam-se para os pais um veculo de transmisso das informaes recebidas.
Paralelamente, como parte integrante do tratamento da criana, o Cren oferece s famlias atendimento psicolgico, com "espao de escuta", e visita domiciliar -importante tambm aos profissionais e estagirios que, em contato com a populao, levam um olhar diferenciado a seus atendimentos futuros. Tambm realiza oficinas diversas a fim de reforar o vnculo intrafamiliar, como aulas culinrias comunitrias realizadas pelas prprias mes, oficinas na casa da famlia na hora do almoo, formao degrupos de obesos e gestantes etc.
DEPOIMENTOS
"Tive sete filhos e nunca vi a desnutrio neles. A imagem que temos de crianas desnutridas daquelas magrinhas da frica. A gente nunca imagina que aquilo pode estar acontecendo com um filho.S comecei a ter ideia de que havia algo errado depois de uma internao do Jackson [o mais novo, hoje com 8 anos]. Ele havia nascido com 3,5 kg e, trs meses depois, estava com 3,1 kg. Eu no enxergava -amamentava e, na minha cabea, fazia tudo direito.
Vivamos em hospitais por causa da bronqueolite [inflamao viral dos bronquolos, tecido pulmonar]. Quando os mdicos quiseram entub-lo, pensei: perdi meu filho. Ele estava em fase terminal. Foi um ms e 18 dias internado e com passagem pela UTI. L, um mdico me falou sobre o Cren.
Levei o Jackson e o Julio Cesar [que hoje tem 9 anos] ao Cren. Os dois estavam desnutridos. Eu vinha com os dois nos braos, ainda muito pequenos, pegando nibus e metr lotados. Deixava os dois no Cren e sabia que eles seriam cuidados. Que receberiam comida e ateno.
Mas foi uma recuperao lenta. Eles me ensinavam o que fazer, chegavam a encher a pacincia, mas muitas vezes eu no tinha como cumprir. Foi um perodo difcil, em que eu apanhava. Meu ex-marido me batia na boca. Sem dentes, ele dizia, ningum olharia para mim. Eu tinha desgostado de mim. Trabalhava catando lixo e meu marido no me ajudava. Sustentava a casa e a famlia com R$ 800.
Uma vez, a coordenadora me chamou. Disse que mandaria uma carta para o juiz para tirar de mim a guarda do Jackson. Ela foi dura e me perguntou: como voc explica que ele volte mais magro do que saiu daqui em menos de um dia? Foi preciso.
Mas eles no cuidavam s dos dois. Eu tambm recebia ateno -no viravam a cara para mim. Quando precisei de mais suporte, eles me deram. Quando decidi pela separao, todos me ajudaram. Eu tinha muito apoio, gostava de vir. Nos encontros com os pais, eu no me soltava. At que um dia pensei: por que s eu vou ficar muda? Falei e me senti segura.
Levaram meus filhos e eu ao [parque de diverses] Playcenter e tive curso de culinria. Aprendi a fazer pratos diferentes e passei a me olhar de outra forma. Eu me separei, e o Julio Cesar recebeu alta da semi-internao dois anos depois. Hoje trabalho na limpeza do Instituto do Sono [ligado Unifesp].
O Jackson uma joia rara - no vive mais no hospital, mas ainda no est recuperado. Ele deve receber alta daqui a pouco."
MARIA PAULA BARBOSA, 38, ajudante de servios gerais