'Meus alunos precisam sonhar', diz francesa que ensina inglês na periferia
Aos 18 anos, a francesa Lucie Arellano, 23, desembarcou no Brasil sem falar português e com uma série de clichês na bagagem.
Bastou um mês e meio em São Paulo visitando uma amiga, em 2011, para mudar sua vida e seu pensamento em relação ao país.
Apaixonada pela cultura e pelos brasileiros, encontrou a possibilidade de vivenciar uma nova experiência no Brasil ao ver um anúncio no Facebook que buscava professores de inglês.
A procura era feita pela rede 4You2, um negócio social que oferece cursos de idiomas e experiências transculturais de forma acessível e de qualidade para a base da pirâmide.
Os cursos são ministrados por professores estrangeiros com mensalidade de R$ 76.
Fundadas pelo estudante de economia Gustavo Fuga, 22, finalista do Prêmio Empreendedor Social de Futuro, em 2015, o projeto já atendeu mais de 4 mil alunos. Ele também concorre na categoria Escolha do Leitor; vote.
Em setembro, ela foi morar no Campo Limpo, na Zona Sul, onde também pisou pela primeira vez em uma escola como professora. Bem diferente da experiência de turista no Morumbi. "Eu conheci shoppings, restaurantes, uma outra São Paulo."
Agora, descobriu que a vida no Brasil é muito cara, que a periferia não é tão violenta como diziam, além de ter encontrado um novo amor. Está namorando o sírio Tarek Ben Ziad, também professor de inglês na 4You2.
Leia a seguir o depoimento de Lucie à Folha.
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Quando eu disse para alguns amigos brasileiros que viria para o Brasil para trabalhar no Campo Limpo, a primeira reação deles foi: 'Meu Deus, você não pode ir lá! Vão te matar, é muito perigoso. As pessoas são loucas'.
O mais interessante para uma estrangeira é vir sem esse tipo de estereotípico. Para mim, é um bairro como qualquer outro no Brasil.
Estou aqui há dois meses. Na França, estudo comércio exterior. Eu tinha que escolher um lugar para fazer estágio de um ano e escolhi a 4You2, onde sou professora de inglês.
Depois que estive no Brasil em 2011, fiquei apaixonada pelo país, pela cultura e pela gente. Coloquei na minha cabeça que voltaria para cá para ter uma experiência real de vida morando aqui.
Em maio, procurando por estágio, achei um anúncio da 4You2 em uma página sobre o Brasil no Facebook. Estágio no exterior é difícil. Quando vi, achei prefeito.
Eles procuravam por um estrangeiro que não falasse muito bem português e com um bom nível de inglês. Também ofereciam hospedagem em casa da família.
Resolvi me candidatar, mandei currículo e carta de motivação, passei por uma entrevista on-line e fui selecionada.
A 4You2 é uma empresa social, um conceito sobre o qual nunca tinha ouvido falar. No início, eles não conseguiam dar salário para os professores.
Agora, recebemos um salário mínimo e a família que me hospeda recebe uma ajuda de custo.
Morando aqui com salário em reais, vejo que a vida é muito cara. Já que meus pais não enviam dinheiro.
Dois dias depois que cheguei ao Brasil, entrei pela primeira vez em uma sala de aula como professora. Foi impressionante, mas natural, porque gosto de ajudar.
É uma troca. Eu vou ensiná-los, mas também vou aprender muito com eles.
As lembranças do curso de inglês nos Estados Unidos me ajudaram a montar uma aula mais dinâmicas, do meu jeito.
Dou aula para todos os níveis de inglês, de segunda a sábado. Os professores são estrangeiros, vindos da Inglaterra e da Alemanha, por exemplo.
Muitos estão pela primeira vez no Brasil e não falam nada em português. Os alunos são forçados a aprender o inglês.
As dificuldades dos brasileiros com o idioma são as mesmas dos franceses. A formação das frases e a gramática da língua inglesa é totalmente diferente.
Estudei inglês e espanhol durante sete anos na escola. Assim como no Brasil, o aprendizado de idiomas também é muito ruim na França.
Aos 18 anos não era capaz de falar inglês. Então, foi quando fui aos Estados Unidos para estudar durante quatro meses.
OS ALUNOS
Meus alunos são muito inseguros. Esse tipo de aula dá força para eles buscarem os seus sonhos. Estamos em um ambiente onde vamos nos preocupar com eles e tentar ensiná-los.
Muitos acham que não é possível [progredir] porque são desse bairro e de uma família que não tem condição financeira.
É muito importante desenvolver empresas como o 4You2 nesse tipo de área. Acesso à educação é um direito desse povo. Eles são uma parte importante do país e da economia.
Os alunos do Campo Limpo têm de acreditar que é possível sair desse tipo de situação por meio da educação, que é a primeira força de um país e de qualquer pessoa.
Estar aqui me permite ver as coisas mais claras. Senti que os brasileiros têm preconceito com moradores da periferia.
Eu moro a 20 minutos de distância a pé da escola. Não me sinto em um lugar perigoso, com certeza não é como o Morumbi ou a Vila Madalena, mas não me sinto em perigo.
É em como todos os outros lugares, uma questão de bom senso.
Tenha certeza de que o inglês pode transformar a vida desses jovens. As escolas de idiomas são muito caras, ainda mais para os estudantes do Campo Limpo. É uma coisa quase impossível.
A partir do momento que você conhece um novo idioma, abre-se um novo mundo, a mente. Quebra-se preconceitos.
Aprendi com os meus alunos. Eles têm muita capacidade de se adaptarem a situações diversas. Têm motivação.
Na 4You2, descobrir o ensinar. Gostei muito e quero desenvolver isso na vida e como trabalho. Gosto de transformar.
DESCOBRINDO O BRASIL
A experiência no Brasil foi muito intensa. Aqui, tudo, absolutamente tudo, é diferente da França. Por exemplo, a forma como as coisas acontecem e se desenvolvem.
Estou como uma criança, fico olhando para tudo. Gosto muito dessa emoção, porque eu acho que o povo brasileiro é muito agradável, acolhedor e expressivo.
Em São Paulo, parece que tudo está misturado: as classes, as pessoas. Você pode encontrar um bairro muito pobre, ao lado de um muito rico.
Claro que tem preconceito, mas aqui as coisas são mais misturadas do que na França.
Gosto muito daqui, mas a desigualdade extrema é uma realidade. É muito impressionante para uma europeia como eu.
A Europa tem pobreza também, mas ela não está perto da área rica e desenvolvida. Aqui, a realidade é muito dura, está na sua cara em todo o lugar de São Paulo.
Aqui também descobri uma cultura muito mais rica do que os clichês que os europeus têm em relação ao Brasil. A cultura é muito interessante, assim como a diversidade de pessoas, de comidas, a arte, a economia, a história e a música. Nunca vi algo parecido.