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09/06/2010 - 06h34

Parreira quer que futebol repita o rúgbi de Mandela

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PAULA CESARINO COSTA
SÉRGIO RANGEL

ENVIADOS A JOHANNESBURGO

Invicto há 12 partidas, o técnico Carlos Alberto Parreira acredita que a Copa do Mundo vai repetir o sucesso de superação da barreira racial de Mandela e do rúgbi, retratado no filme "Invictus". "O futebol está unindo o país", disse Parreira à Folha.

Aplaudido por brancos em restaurantes de Johannesburgo, o técnico carioca de 67 anos comanda uma equipe quase exclusivamente negra. "Temos um branco apenas porque é o único com condição de jogar. Futebol aqui é esporte de preto."

Em "Invictus", o diretor norte-americano Clint Eastwood conta a história da Copa do Mundo de rúgbi de 1995, realizada no ano seguinte à eleição de Nelson Mandela, num país recém-libertado da política oficial de segregação racial, o apartheid. Baseado no livro-reportagem "Conquistando o Inimigo", do inglês John Carlin, o filme mostra como Mandela foi o arquiteto por trás da campanha vitoriosa do país ao transformar o rúgbi num fator de integração nacional com o slogan "um time, um país".

A África do Sul sediou o Mundial de um esporte cuja equipe nacional mobilizava somente os brancos. A torcida de Mandela, ícone nacional, fez com que os negros passassem também a torcer por um time majoritariamente branco.

"Um jogo aqui é uma festa. A torcida é talvez a mais alegre do mundo. Eles dançam, cantam. Tem grupo de meninas que fazem uma dança bonita, sensual", descreve.

Entusiasmado com o país africano, Parreira disse que o Brasil perdeu o "momento histórico" ao decidir não construir estádios novos para a Copa de 2014.

Recordista como técnico em Copas, o treinador diz que esta é a última seleção que dirige. Foi técnico de cinco países, em seis campeonatos mundiais: Kuwait (1982), Emirados Árabes (1990), Brasil (1994 e 2006), Arábia Saudita (1998) e África do Sul.

Ele afirma que os jogadores de futebol são iguais em todo mundo e desconhece se alguns dos seus atletas é portador do HIV. "A lei impede de realizarmos o exame", disse.

Não arrisca palpites nem sobre o desempenho da própria seleção que dirige nem sobre quem será o campeão. Considera favoritas as óbvias seleções de Alemanha, Argentina, Inglaterra, Espanha e talvez Itália, além do Brasil. Acha que os outros times africanos já tiveram melhores momentos. "Será uma Copa bonita de ver", conclui.

Leia a seguir a entrevista exclusiva dada à Folha, na terça-feira, no jardim do luxuoso hotel Southern Sun Graystone, em Sandton, Johannesburgo.

FOLHA - Nos treinos da seleção percebe-se um clima de união entre a torcida. Você acha que a seleção pode ter essa função de unir brancos e negros do país?

PARREIRA - Os brancos estão animadíssimos. Fui num restaurante italiano, no final de semana, onde só vai branco, e fui aplaudido. Todos ficaram de pé e me deixaram emocionados. Tínhamos acabado de ganhar da Dinamarca.

O que a seleção de futebol está fazendo o Mandela fez com o rugby. "Um esporte, um país". O Danny Jordaan [presidente do comitê organizador local] disse que estamos unindo o país. O que vai acontecer na Copa, não sei. Estamos num grupo dificílimo. A seleção estava desacreditada quando cheguei. Hoje as pessoas tem esperança.

Um jogo aqui é uma festa. Eles são muito alegres e brincalhões. A torcida é talvez a mais alegre do mundo. Eles dançam, cantam. Tem grupo de meninas que fazem uma dança bonita, sensual, garotas com corpo bonito. A torcida vai a loucura. Os homens também dançam. Vai ser uma Copa bonita de se ver.

FOLHA- Existe alguma questão racial no time?

PARREIRA- Não existe. Temos um branco apenas porque é o único com condição de jogar. Nunca ninguém questionou nada sobre cor. No futebol local, temos poucos brancos. Futebol aqui é esporte de preto. 90% dos profissionais são pretos.

FOLHA - Você deixou de fora o Benni McCarthy. Apesar de ser a grande estrela do time, ele estava gordo e tem fama de mulherengo. Você fez isso depois da experiência na Copa passada com o Ronaldo e o Adriano?

PARREIRA - Ele é odiado e amado no país. Tem muitos que não querem que ele se aproxime da seleção. Não tivemos critérios, mas bom senso. Levamos em consideração a parte técnica, física, disciplinar. Ele não se encaixou em algo. Ele estava com nove quilos acima do peso. Se ele trouxe mulher para o hotel, ninguém sabe, mas não acredito.

FOLHA - Como é a questão sexual no país?

PARREIRA - Eles são muito liberais. Tanto quanto os brasileiros. Não tem muitas restrições. Os brancos são mais apegados a família. Aqui, tem jogadores que já tiveram três mulheres, mas nada ao mesmo tempo oficialmente. Vários deixam de pagar pensão, já foram oficiados por isso. Os zulus podem ter quatro mulheres, mas não conheço nenhum atleta assim.

FOLHA - Você permite sexo na concentração?

PARREIRA - Não. Isso não permito, mas eles fazem sexo sem problemas na folga. No dia da folga, não quero saber o que eles fazem.

FOLHA- Os índices de aids são enormes. Já teve algum caso de jogador infectado?

PARREIRA - Não. Já aconteceu em clubes. Mas na seleção, não sei. Aqui é proibido fazer exame de HIV. Só podemos fazer, se os atletas permitirem.

FOLHA - A África do Sul teve uma longa preparação, inclusive no Brasil. Houve uma evolução tática?

PARREIRA - No Brasil, eles vivenciaram o melhor futebol do mundo. A Bafana Bafana não tinha uma cara. Todos conhecem o estilo do futebol brasileiro, do alemão, do argentino. A partir daí, quis dar um identidade. Fiz questão de colocar a bola no chão. Eles são pequenos, não são fortes. Tem de fazer eles acreditarem que podem jogar com a bola no chão. Bola no chão, bola no chão... Não podemos ficar jogando pelo alto. Parecia coisa de criança. E treina, treina, treina... Não jogamos igual ao Brasil ou ao Barcelona, mas já temos uma noção do que é posse de bola.

O time tem um "shape", tem uma forma tática definida, uma identidade, uma disciplina tática e liberdade. Jogamos apenas com um volante e dois meias, quero laterais ofensivos.

O futebol sul-africano vai melhorar? Não sei. É uma das dez ligas mais ricas do mundo. O futuro que é incerto. Eles têm que investir na base. Caso contrário, vamos ficar pra trás.

FOLHA - Não está havendo uma onda em várias seleções, como o Brasil, de isolar os jogadores? Isso é bom?

PARREIRA - A gente como treinador quer um pouco de privacidade. Por exemplo, o Ronaldo é um cara normal. No final do ano, ele foi à minha casa em Angra dos Reis, brincou com as crianças. Quando eles chegam no meio da multidão, eles ficam com medo. Eles são pessoas normais, mas quando veem aquela multidão de câmeras, eles travam e mudam o comportamento. Tem dupla personalidade. Esse mundo de celebridade, muitas câmeras, assusta. Mas dentro do campo, eles jogam com o coração.

FOLHA -O futebol virou showbizz?

PARREIRA - A gente fala da televisão, da mídia, os comerciais. As empresas estão investindo em futebol. O futebol mudou. E está sobrevivendo com isso. A gente não tem que ser contra a mídia. Se a televisão quer o jogo num horário, não se discute, ela está pagando, acabou. Tem de jogar. Sem esse dinheiro não se vive. Tem que ser pragmático. E hoje os atletas ganham mais, jogam mais tem mais responsabilidades, os prêmios são maiores.

FOLHA - E o uso político do futebol?

PARREIRA - Acho que o esporte não é muito usado. Os ministros me mandam cartas de apoio. Os deputados vestem verde e amarelo na sexta-feira. Mas acho que isso não é usar politicamente. Trabalhei no Brasil e nunca um presidente pediu nada. Dizem que o Médici interferiu em 2009, mas não acredito.

FOLHA - Os jogadores africanos são muito diferentes dos brasileiros, apesar das diferenças de vivência?

PARREIRA - Eles são muito parecidos no mundo todo. Mesmo gosto. Têm tatuagens, fone no ouvido, ipod, carros. Só mudam de camisa. É uma identidade impressionante. Eles não falam muito sobre o apartheid aqui, não falam com mágoa, com revolta. É uma parte da história que foi superada. Falam com orgulho do Mandela.

FOLHA - Depois de quatro anos aqui, você acompanhou a preparação da África do Sul para sediar a Copa. O que você acha que o Brasil precisa fazer?

PARREIRA - O primeiro treino que dei foi no antigo Soccer City em fevereiro de 2007. Presenciamos a primeira quebrada de bloco de cimento. Eles botaram tudo abaixo e fizeram essa beleza de estádio que é o mais bonito do mundo. Porque ele é único. Os estádios do mundo inteiro estão estereotipados, são todos iguais, todos têm arcos imensos. Esse é um vaso de se beber água, de cor de terra [é inspirado no "calabash", tradicional vaso africano]. De noite, ele é imponente. Dá uma sensação de grandeza. É uma concha, a iluminação é perfeita, o gramado e perfeito. É original, é aconchegante. É o melhor do mundo.

Nós perdemos uma oportunidade de construir três ou quatro estádios novos, modernos. Tomamos a decisão de renovar três estádios de 60 anos. Com todo respeito ao Maracanã, onde cresci, podíamos ter outro grande estádio no Rio. Minas, Porto Alegre e São Paulo poderiam ter feito. Perdemos uma oportunidade histórica. Se não vamos fazer agora pra a Copa, não faremos mais.

Os aeroportos são uma beleza aqui. O de Johannesburgo é igual aos da Europa. Eles fizeram quatro aeroportos modernos.

FOLHA - Qual é o maior problema no país?

PARREIRA - O transporte é o ponto mais baixo. Eles não têm a cultura de transporte público. Todos têm carro. Para ir ao Soweto às 4h da tarde, você fica duas horas. A frota de carro aqui é dez anos mais nova. O nosso governo é ganancioso, que bota 35% de imposto nos carros.

FOLHA - O que aconteceu com o Brasil em 2006

PARREIRA - Faltou a química e a ambição. A culpa não foi da preparação na Suíça. Deletei aquilo. Não fui eu que perdi em 2006 e nem fui eu que ganhei sozinho em 1994. Faltou o que tínhamos até um ano antes na Copa das Confederações. O Ronaldo e o Adriano vieram dos seus clubes acima do peso. Além disso, eu não ia cortar o Ronaldo, ninguém ia cortar o Ronaldo. O Ronaldo é o Ronaldo. Ele ainda fez quatro gols.

FOLHA - Você vai disputar o seu sexto Mundial, como treinador. O que te motiva a continuar? Você pretende trabalhar na Copa de 2014?

PARREIRA - É gostar do que faz e fazer o que gosta. Copa do Mundo é uma experiência que não tem como reproduzir, fica gravada em você. Aqui, tem que pegar o touro a unha mesmo.

Depois, acabou. É difícil cortar o cordão umbilical com o futebol. Você gosta tanto. O que me seduz é o trabalho dentro de campo. Na Copa de 2014, poderei estar de observador técnico da Fifa. Agora, o ciclo de seleção é pra encerrar aqui mesmo. Já são seis copas como treinador. O bom é que nada foi planejado.

FOLHA - Qual delas foi a mais marcante?

PARREIRA - No Kuwait foi maravilhoso. Tudo que tenho no futebol eu devo ao sheik Fahad Al fahad Al Sabah. Ele era irmão do Emir. Ele me colocou no time principal. Era ovelha negra da família, era a favor dos palestinos. Andava sempre com dois revólveres embaixo da roupa. Ele deu todo apoio, fomos campeões da Ásia. Ele virou mártir no país depois. Por ocasião da invasão iraquiana, ele foi o único da família real que se recusou a fugir. Ele ficou no palácio com uma metralhadora e foi morto.

FOLHA - O que você leva daqui, o que você gostou da cultura africana?

PARREIRA - Levo artesanatos, peças em madeira, belas máscaras. Comprei uns seis quadros, mas não estou tendo muito tempo para isso. Vou sempre numa feira de artesanato no Zoo Lake.

 

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