RENAN CACIOLI
DE SÃO PAULO

Antônio Carlos recebeu a Folha em seu apartamento de um andar na Vila Nova Conceição na última sexta-feira pela manhã. Cara de sono, lar preenchido por parentes e o border collie Fred, "Zago" não quis falar de Palmeiras quando recebeu da reportagem o direito de escolher o primeiro tema da entrevista.

O assunto escolhido foi o encontro com o adversário mais difícil da carreira. Há cerca de um mês, num check-up médico de rotina, ele descobriu um nódulo maligno na garganta, já extirpado.

"Você já pensa besteira, né. Meu pai e três tios faleceram de câncer. O que eu tenho de fazer agora é um tratamento. Depois, um acompanhamento de rotina", diz.

"Bom, vamos falar de futebol", proponho. Com Fred no colo, Antônio Carlos se ajeita na cadeira enquanto o trânsito faz barulho na sacada. Minutos depois, as polêmicas nas quais o ex-zagueiro se envolveu ao longo dos anos esquentam o bate-papo.

Folha - Isso acabou ficando rotulado em você, né, ter pavio curto?

Antônio Carlos - Na época de jogador, sim.

Folha - E você tinha, mesmo?

Antônio Carlos - Tinha, isso que é duro, sempre tive pavio curto em campo. Hoje em dias as pessoas falam que eu era até violento. Violento é aquele que tira o outro jogador de uma partida, e eu não lembro de ter rachado ninguém. Mas aí paguei por algumas coisas. Por exemplo, ter dado uma cuspida na cara do Simeone num Roma e Lazio, ter chutado a cabeça de um jogador do Atlético-PR [Paulo Miranda] [risos], aquele episódio do Jeovânio [quando fez um gesto alisando com o braço com o dedo, como se quisesse mostrar a cor da pele do adversário] que eu não gosto nem de lembrar...

Folha - Foi seu pior momento?

Antônio Carlos - Foi o pior da minha vida profissional e até da minha vida particular, a não ser quando meu pai faleceu. Porque eu não sou racista, meus melhores amigos são negros, tenho um cunhado que é negro, minha casa é frequentada por negros. O pior de tudo é você pagar e não dever.

Folha - Isso te trouxe problemas até nesse círculo de amizades?

Antônio Carlos - Não, mais em relação à imprensa, à imagem...

Folha - Mas nem na rua, nunca ninguém te chamou de racista depois daquilo?

Antônio Carlos - Não, nunca. Na rua, não. Mais nos estádios que as pessoas enchem o saco.

Folha - Depois, como o caso acabou resolvido na Justiça?

Antônio Carlos - Eu tinha de me apresentar uma vez por mês no fórum para assinar um documento. Se eu tivesse que me ausentar do país por mais de uma semana tinha que pedir uma liberação para viajar. Foram três anos fazendo isso.

Folha - E com o Jeovânio você nunca mais teve contato?

Antônio Carlos - Não, nunca mais conversei. Até porque eu tentei entrar em contato com ele no início, né, e depois ele não quis conversa. Deixei quieto.

Folha - Você acha que ainda há um pouco de hipocrisia na questão do racismo no futebol?

Antônio Carlos - Ah, acho que tem bastante. Até nos treinamentos eles brincam entre eles 'ah, seu negão'. Acho que é um pouco da imprensa querer dar exemplo, mesmo. Na Europa é um pouco diferente, alguns lugares têm discriminação muito grande. Mas aqui no Brasil, com a mistura de raça que nós temos, eu não vejo discriminação nenhuma.

Folha - Esse assunto continua sendo lembrado. Quando você chegou ao Palmeiras tinha aquela faixa "Fora racista"....

Antônio Carlos - Acho que na vida de qualquer pessoa pública o que fica às vezes mais marcado, mesmo, são as coisas ruins. O que você faz ou fez de bom não é lembrado. Fui praticamente o último grande campeão no Palmeiras. Quando cheguei teve a faixa, mas de garotos que nem sabem da história do Palmeiras, quem foi ou o que fizeram os jogadores daquela época.

Folha - Essa fúria interna é algo que você tem de controlar diariamente, ou depois que parou de jogar se acalmou?

Antônio Carlos - Faço terapia com um psicólogo lá em Presidente Prudente, que é um cara que eu tenho uma confiança danada. Aprendi a me controlar.

Folha - Mas você começou a fazer terapia por causa disso?

Antônio Carlos - Não. É que todo jogador fala que está preparado para parar de jogar futebol, e é uma mentira grandíssima. Se o cara falar que não sente falta do futebol é porque foi um merda de um jogador, porque todos sentem saudades. Você passa 20 anos da tua vida jogando para 80, 100... Eu já joguei para 120 mil pessoas no Morumbi. O mais difícil é você parar e ficar longe do futebol. E eu parei e já engatei uma outra função, que foi a de diretor no Corinthians. Eu entrava no vestiário, via o pessoal se trocar, aquecendo, nossa, me vinha um negócio ruim por dentro. Pensei 'pô, vou ter de fazer alguma coisa'. E comecei a fazer terapia, isso me ajudou bastante.

Folha - Vamos falar sobre o incidente no Palmeiras. Por que só você e o Robert foram punidos?

Antônio Carlos - O que ficou evidente é que eles não estavam contentes com o meu trabalho. Não justificaram o porquê da minha demissão. Por ter discutido com o Robert não foi, porque é uma grande mentira. Tanto é que o Marcos Assunção deu uma entrevista dizendo que não houve discussão no ônibus e que eles estão atrás do dedo-duro que inventou essa história. Se rescindiram o contrato do Robert, teriam de rescindir dos outros jogadores que estavam com ele.

Folha - Que eram o Ewerthon e falaram do Marquinhos....

Antônio Carlos - Não, era o Maurício [Ramos, zagueiro]. O Robert pagou não sei por quê. E pegaram essa mentira como justificativa para me demitir.

Folha - Não houve discussão?

Antônio Carlos - Não houve.

Folha - Como foi, exatamente?

Antônio Carlos - Os jogadores chegaram às 5h no hotel, tinham que voltar até as 4h. Quando acordei, me passaram o que tinha acontecido. Já era a segunda vez, porque em Curitiba tinha acontecido o mesmo. Eles entraram no ônibus, eu reuni todos e falei: "Olha, na vida a gente tem sempre uma segunda chance e ela foi dada a vocês, só que vocês pisaram na bola de novo. Então, a partir de agora, ninguém viaja antes". Porque tinham viajado depois do jogo o Léo, o Vítor, o Márcio [Araújo] e o Pierre, tudo com consentimento do Seraphim [Del Grande, diretor de futebol], que era o chefe da delegação.

Folha - Esses atletas voltaram antes por questões particulares?

Antônio Carlos - É, para ficarem com a família. E, coincidentemente, eram quatro evangélicos. Aí eu falei: "A partir de agora não tem aniversário de mãe, de filho, de esposa, todo mundo volta junto com a delegação". Aí o Robert levantou falou "ah, mas a gente quer os mesmos direitos dos evangélicos". E falei "por que, não foram dados os mesmos direitos a vocês? Os caras voltaram pra casa ontem como você poderia ter voltado se quisesse. Então vamos fazer o seguinte: amanhã a gente conversa no CT sobre evangélico e não evangélico, tá?" Ele resmungou um pouco, mas acabou ali.

Folha - Mas essa questão dos privilégios para os evangélicos já era um problema no grupo?

Antônio Carlos - Não, o Robert que fez essa associação. No grupo do Palmeiras, quando eu cheguei, falaram que o Danilo tinha um grupo, que o Diego Souza tinha outro, o Marcos outro. E no final os três tinham uma amizade de irem para Itatiba juntos, de viajarem juntos. Nunca tivemos problema ali.

Folha - Você diz que não houve discussão quando falou-se até em agressão. Você acredita que isso já fez parte do processo de 'fritura' ali dentro?

Antônio Carlos - Ah, cara, pode até ser. Inventaram uma situação totalmente diferente do ocorrido.

Folha - Não teria sido mais lógico liberar todos os atletas de uma vez e só cobrar a reapresentação no CT depois?

Antônio Carlos - É que no Brasil não tem essa cultura de liberar os jogadores. Na Europa, acontecia várias vezes. Acabou o jogo, cada um segue sua vida.

Folha - Fala-se nos bastidores que no incidente em Curitiba você ficou bravo porque a coisa toda aconteceu no hotel, e aí a imagem do clube poderia ser prejudicada. É isso mesmo?

Antônio Carlos - É isso. Como aqui no Brasil temos essa mentalidade, se você quiser fazer algo não pode nem chegar perto de onde a delegação está hospedada. Se for fazer, faça longe. E naquele momento, em Curitiba, trouxeram algumas pessoas para o hotel e queriam subir de tudo quanto é jeito.

Folha - Mas o que os dirigentes falaram depois de Curitiba?

Antônio Carlos - Que tomariam providências, mas não foi feito nada.

Folha - Você acha que a diretoria atual bate muita cabeça?

Antônio Carlos - Aí vamos voltar a um episódio que houve no ano passado na briga entre o Obina e o Maurício. Naquele momento eu não teria mandado eles embora. Multava os dois e teria ficado com o Obina, que era o único centroavante que o Palmeiras tinha, o Robert nem vinha jogando. São situações que você tem de saber contornar. Eu tenho que ouvir as pessoas, pensar nas consequências. Tudo tem que ser feito com inteligência, não no ímpeto, como acontece dentro de campo. Precisa de frieza, sem ficar ouvindo muito zum-zum-zum de torcedores.

Folha - Como era seu relacionamento com o Sérgio do Prado?

Antônio Carlos - No início era ótimo. Depois, quando houve o episódio do Leandro Amaro que ele não foi inscrito na CBF...E eu dei uma declaração que o Leandro tinha sido contratado para disputar a Copa do Brasil, que não teríamos um jogador para substituir o Danilo. Nunca falei de incompetência em relação ao Sérgio do Prado, que é a pessoa que hoje que não sei se cuida da documentação, ou se é diretor de futebol, você não sabe o que ele faz ali dentro realmente. Nosso relacionamento mudou e muito por parte dele. Não sei se é ele o dedo-duro, eu sei que as pessoas sabem quem é. Não estou aqui para dar nomes. Os jogadores sabem quem é.

Folha - O dedo-duro é um jogador?

Antônio Carlos - Não, não é jogador, nem da comissão técnica. Mas todos ali sabem quem é.

Folha - É o Sérgio do Prado?

Antônio Carlos - Não, não sei.

Folha - A partir de que momento sentiu que estava sendo fritado?

Antônio Carlos - Depois do que houve no Rio, mesmo.

Folha - Esses problemas extracampo não podem atrapalhar sua carreira como técnico?

Antônio Carlos - Acho que não. Em Prudente [quando uma noitada com a participação do atacante Ronaldo resultou na queda de Zago], eu segurei uma bronca. Fui apagar um incêndio e acabei queimado. E agora, no Palmeiras, todos sabem da verdade. Jamais eu bateria boca com jogador.

Folha - Você era um jogador de curtir bastante a noite?

Antônio Carlos -Não, por incrível que pareça, não. Porque eu sou casado desde os 18 anos, né? Com a mesma esposa, ainda! Não gosto muito de noite. A gente foi em várias festas quando éramos campeões. Agora, gosto de ir em restaurante. Se ficar aberto até 3h, 4h, eu fico. Com amigos. Eu costumo dizer que não vou em restaurante pra comer, porque comer bem eu como em casa. Eu vou pelo bate-papo com o amigo, pra tomar um vinho, um chope. Ou um bar que você está bebendo com os amigos. Agora, balada, discoteca, eu nunca gostei.

Folha - Mas você não recrimina, também?

Antônio Carlos - Não!

Folha - Mas acha que isso prejudica a carreira do jogador?

Antônio Carlos - Desde que tudo seja feito no momento certo. Por exemplo, você não pode ter um jogo no sábado ou no domingo e o jogador estar na noite na quinta-feira, né? Acho que isso atrapalha bastante. O jogador de futebol precisa de uma vida regrada, não dar muita bandeira. É uma profissão diferente, não tem jeito. Exige do teu físico. Essa questão dos jogadores beberem. Todos bebem, cara. Se você pegar hoje no futebol 80% acho que bebem um choppinho, um vinho. E aí quando o jogador é pego bebendo todo mundo cai de pau em cima querendo dar exemplo. Claro que é importante que jogador de futebol passe uma imagem boa por ser ídolo de milhões de pessoas, mas ao mesmo tempo é uma pessoa comum, sujeita a erros.

Folha - Seu pensamento é continuar como técnico, mesmo?

Antônio Carlos - É.

Folha - Você não quer voltar a ser dirigente, então?

Antônio Carlos - Não.

Folha - E já recebeu algum convite?

Antônio Carlos - Ah, estou dando um tempo até porque tenho que fazer o tratamento. Se não aparecer nada, também, tem a Copa do Mundo, que eu gostaria de assistir. Quero continuar como treinador porque tenho algo a ensinar para os jogadores. E o meu lugar é ali no campo, não atrás de uma mesinha. No Corinthians fui diretor, mas aceitei o convite mais pelo Andres [Sanchez, presidente corintiano], que é meu amigo de infância.

Folha - O que você mais gosta e o que mais detesta no futebol?

Antônio Carlos - Cara, eu odeio mentira, odeio, odeio [irritado]. Eu sei que no futebol você tem que esconder algumas coisas porque senão vai pagar no futuro, mas outras você tem que falar. Como, por exemplo, essa minha saída do Palmeiras teria de acontecer de uma maneira verdadeira, e não mentirosa como foi. Isso me deixa puto, puto mesmo.

Folha - Mas o que lhe deu vontade de fazer por causa disso?

Antônio Carlos - Me deu vontade de brigar, entendeu? [risos]. Pegar quem falou isso à imprensa e dar uns sopapos nele.