O pecado colonial e o recalque da mestiçagem

JOSÉ MAURÍCIO ANDION ARRUTI
Especial para a Folha


Como qualquer outro grupo que eles estudam, nossos antropólogos também produziram suas classificações sobre o mundo, separando e agrupando coisas, fenômenos e pessoas.

Uma das distinções produzidas por essas classificações, usada tanto para explicar o Brasil quanto para organizarem-se eles mesmos, foi a distinção estabelecida entre os estudos étnicos e os estudos raciais. De um lado, aqueles que se interessam pelos grupos de origem americana pré-colonial, todos reunidos sob o rótulo genérico de “índios”, de outro, aqueles interessados nos grupos de origem ou descendência africana, reunidos sob o rótulo genérico de “negros”.

A maior e mais conhecida parte do trabalho de Darcy Ribeiro foi realizada respeitando essa classificação básica. Darcy Ribeiro escreveu sobre índios e sobre a proteção oficial que lhes deveria ser dedicada, chegou a participar pessoalmente do extinto Serviço de Proteção ao Índio e ajudou a estabelecer as bases acadêmicas e programáticas do “indigenismo autêntico”.

Sua pretensão teórica, no entanto, sempre foi mais ampla e é nela que encontramos um dos raros momentos de ruptura com a distinção entre questões étnicas e questões raciais. Num texto de 1985, marcado por seu estilo forte e polêmico, Darcy Ribeiro acusava seus colegas de se preocuparem em tratar “cientificamente” (aspas dele) apenas temas “limitados e irrelevantes”, de se interessarem somente pelas influências culturais “pretensamente recíprocas” entre os povos e, por isso, permanecerem investigando a destruição e reconstrução das culturas tribais, sem colaborar em praticamente nada para o que ele considera o fundamental: um olhar global sobre “a edificação dos povos emergentes como entidades étnicas”.

Retrospectivamente, portanto, seus trabalhos sobre os padrões de contato entre índios e brancos no Brasil podem ser vistos como parte de um projeto mais amplo definido por duas metas completamentares. De um lado, buscar a explicação global do colonialismo europeu em termos de “processo civilizatório”, configurador de toda a variedade americana que conhecemos hoje. De outro, formular uma “teoria do Brasil”.

Tradição marginal
Surgem daí ao menos dois pontos importantes a serem mencionados sobre o pensamento de Darcy Ribeiro no contexto de debates sobre as relações raciais no Brasil. Inicialmente, recupera uma tradição marginal em nossas ciências sociais ao buscar pensar o Brasil como realidade latino-americana.

Em segundo lugar, por ter como horizonte a formulação de uma teoria do Brasil, torna-se impossível deixar de lado a questão do negro. Para isso, ele inclui o negro no mesmo modelo explicativo já formulado para os índios, através de uma declarada recusa da idéia de raça, que é então subordinada às noções de “minoria étnica”, “etnia hegemônica”, “macroetnias”, “populações muti-étnicas” e outras variações.

Com este recurso, rompe com uma distinção canônica e abre espaço para formulações comuns ou homólogas, já que seu objeto de interesse não são particularidades fundadas no sangue, no psiquismo ou na cosmologia mas, pelo contrário, nas composições criadas pelo contato, pelo confronto entre formas culturais e o seu produto.

Contudo, expulsa pela porta da frente, a raça volta pelos fundos. Para construir seus amplos modelos explicativos, Darcy Ribeiro recorre a inúmeras tipificações e, numa delas, define dois tipos básicos de população, gerados por diferentes “processos de sucessão ecológica”.

Num tipo, o processo tem por base uma população européia imigrante trazida em unidades familiares já constituídas, que produziu núcleos homogêneos e se reproduziu socialmente excluindo o contingente indígena, dizimado, e negro, marginalizado. No outro, o processo se deu pela implantação de uma população européia fragmentada, composta principalmente de homens e que acabou impondo-se às outras matrizes raciais pela miscigenação intensiva com índias e negras. Nesse segundo caso, onde nos incluímos, foi produzida uma vasta camada mestiça e mulata, que passou a constituir o principal das populações nacionais.

Trata-se mesmo de um inevitável macroprocesso ecológico. Esse amalgamento de raças, que aos poucos vai absorvendo e assimilando o próprio branco, tão seguro de sua superioridade, acelera-se com o tempo, transformando profundamente a população de toda a América, até fazê-la uma representação cada vez mais homogênea do humano e, por isso, mais capacitada a conviver e a identificar-se com todos os povos. Essa nova raça mestiça tem por isso um grande poder de transformação, de romper barreiras, realizando como corpo e como cultura, o ideário da quebra das distinções sociais e nacionais.

Assim, como para outros autores, a questão das misturas raciais continuou sendo para Darcy Ribeiro um elo oscilante na explicação do Brasil, não mais pelo viés da democracia racial, como em Gilberto Freyre, ou da definitiva degeneração de Nina Rodrigues, mas pela formação do que ele chamou de uma “proto-etnia”, formada pela combinação das matrizes culturais e biológicas indígena, negra e européia, num resultado original, com o qual toda a população vai aos poucos se identificando. Somos uma etnia em plena formação, mas sob algumas condições.

Um olhar triste
Na verdade, o primeiro olhar de Darcy Ribeiro sobre o brasileiro é um olhar triste. O resultado da desumanização e da “desculturação” de índios e negros foi a formação de uma classe de homens mestiça e culturalmente espúria, marcada que é pelo pecado colonial, pelo “drama de ser dois”, nativo e europeu, alienado e alienante.

Ao adotar como visão de si mesmo a ideologia de seus dominadores, o mestiço opta pelo recalque e pela traição de tudo que nele não for espelho da Europa: o filho de índia e europeu, identificando-se com o pai, tornou-se perseguidor do gentio materno; o mulato, buscando ascender socialmente, trata desesperadamente de embranquecer, reforçando e legitimando o preconceito com o negro.

Para romper com essa realidade é necessário nos voltarmos para nossa capacidade de criação cultural, mediante um esforço racional de reumanização e amadurecimento cultural paulatino, capaz de elevar-nos até a condição de etnias nacionais. Na sua antropologia do povo brasileiro, índios e negros, depois de um perverso processo civilizatório, passam a constituir uma proto-etnia em busca de um caráter. Nela não existe interesse sobre os conflitos raciais a não ser como reflexo de uma estrutura social injusta, produzida por uma ideologia colonial absorvida de forma acrítica.

Os processos de desalienação e de reestruturação cultural são provavelmente processos naturais, diz ele, como formas que as sociedades encontram de escapar da deterioração. Mas, e é isso que interessa a Darcy Ribeiro, esse processo pode e deve ser impulsionado pela intervenção racional, que procure romper com preconceitos e com as noções de predestinação, concebendo a realidade como suscetível de mudança intencional.

Existe portanto um compromisso político e cultural de todo aquele que produz cultura, com a transformação desta proto-etnia de mestiços envergonhados numa etnia autêntica e autônoma. A sua teoria do Brasil na verdade é, simultaneamente, a formulação e a realização disso. Ela tem a intenção de revelar, não tanto como é, mas como pode vir a ser.

JOSÉ MAURÍCIO ANDION ARRUTI é mestrando do PPGAS (Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social) do Museu Nacional do Rio e pesquisador associado do Peti (Projeto Estudo sobre Terras Indígenas no Brasil)

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