crítica música/erudita
Final arrebatador de concerto consolida a Osesp de Marin Alsop
Orquestra paulista tocou nesta quinta-feira (26) a obra-prima de Gustav Mahler na abertura desta temporada
Não há carência estrutural em "Rapture" ("arrebatamento"), do norte-americano Christopher Rouse, primeira obra apresentada no concerto de abertura da temporada 2015 da Osesp na quinta-feira (26), na Sala São Paulo.
Ademais, a regente titular Marin Alsop e a orquestra esbanjaram competência, no nível das melhores gravações disponíveis. Também merece menção a escolha oportuna de um compositor vivo para iniciar o ano.
Mas a "Sinfonia n.5", de Gustav Mahler (1860-1911), apresentada na sequência, atinge, em poucos compassos, o arrebatamento que Rouse tão só tangencia.
Bastou Alsop olhar para os contrabaixos --pesantes, divididos para atacar a mesma nota com e sem arco (a descida do compasso 23)-- para que a música capturasse um elemento precioso em cada um de nós.
Esse elemento é de difícil definição e, no limite, a totalidade da sinfonia --um discurso instrumental de mais de uma hora dividido em três partes e cinco movimentos-- é uma aposta na dignidade cognitiva e na autonomia das formas sonoras.
De que forma um material tão simples e reduzido sai imune após tantas intempéries, transformações, crises e distorções?
O primeiro movimento (marcha fúnebre) foi do trompete solista (em grande noite), mas também do timbre aveludado das cordas. E o som dos cellos deixou marcas no revolucionário e violento segundo movimento.
Nele Mahler liberta a marcha fúnebre de si mesma, antecipa Arnold Schönberg (1874-1951) e evoca Richard Wagner (1813-83) com um coral que prepara o movimento final.
Renovadas, as trompas começaram bem a sua nova fase, e a ousada linha solista do terceiro movimento da obra foi tocada com extroversão, sem medo.
Na dança longa, sedutora e recortada do "Scherzo", a sinfonia parece querer se perder; Alsop tomou um tempo elegante, sem temer aprofundar a angústia.
Depois, no silêncio sepulcral da breve pausa entre os movimentos, um único casal levantou e saiu. Todo o público parece ter pensado o mesmo: que pena, com certeza não sabem que agora virá o "Adagietto".
Escrita somente para cordas, a obra já era célebre quando foi utilizado no filme "Morte em Veneza" (1971) --lembremos que a sinfonia de Mahler estreou em 1904.
RESPEITO MÚTUO
Em muitos momentos, a harpa (no canto esquerdo) não toca a primeira nota do acompanhamento, que é feita pelos contrabaixos (no canto direito), o que produziu um efeito espacial sutil de complementação.
E o finale mostrou que a Osesp é hoje "a Osesp de Marin Alsop". Mais do que respeito mútuo, após três temporadas completas há cumplicidade entre ela e os músicos. Engajamento conquistado com trabalho.
Mahler ainda é capaz de arrebatar, e o faz sem idealizações. O interesse do público é evidente --e não tem nada de acomodado--, o que atesta haver espaço interior sobrando para experiências como essa.