Ecoturismo ameaça deixar bichos mansos demais, diz pesquisa
Cientistas do Brasil e EUA propõem que contato repetido faz animais perderem a capacidade de fugir de predadores
Indicador chamado 'distância para iniciação de fuga' mede até onde potencial agressor pode se aproximar do animal
Do ponto de vista dos bichos que estão em seu ambiente natural, o ecoturismo talvez seja uma má ideia, ao menos da maneira como é praticado hoje, adverte um grupo de pesquisadores do Brasil e dos EUA.
Para eles, é preciso levar em conta a possibilidade de que o contato recorrente com seres humanos acabe alterando os padrões de estresse e vigilância das espécies selvagens, tornando-as, para todos os efeitos, excessivamente sossegadas. Com isso, poderiam virar presa fácil tanto para caçadores humanos quanto para seus inimigos naturais.
"Muito mais do que apontar casos específicos, o que a gente quer com esse estudo é levantar a discussão e estimular as pessoas a investigar o tema", diz o zoólogo Eduardo Bessa, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR).
Bessa assina o estudo junto com seus colegas Benjamin Geffroy, Diogo Samia e Daniel Blumstein. O grupo publicou sua análise do tema em artigo na revista científica "Trends in Ecology & Evolution".
O zoólogo diz que, no estudo, a equipe preferiu usar o termo "turismo de natureza", em vez de "ecoturismo", para deixar claro que muitas dessas iniciativas não levam em conta o que se sabe sobre o efeito das interações entre pessoas e animais.
Dá-se o nome de habituação, por exemplo, a um fenômeno relativamente comum e fácil de entender. Após repetidos encontros com bípedes sem pelos cuja única arma é um smartphone sempre pronto a filmar ou fotografar, a tendência é que os animais deixem de considerar as pessoas como potenciais ameaças.
HORA DE DAR NO PÉ
Esse fenômeno está bem documentado em estudos sobre espécies selvagens que fazem o caminho inverso, por assim dizer, e colonizam áreas urbanas (veja infográfico). No caso desses bichos, pode haver uma redução dramática da chamada FID (sigla inglesa de "distância para a iniciação da fuga", ou seja, a distância mínima em relação a um ser humano que faz determinado animal decidir que está na hora de sair correndo ou voando).
No caso de 48 espécies de aves europeias, a FID das populações urbanas normalmente é a metade da que se vê entre grupos da mesma espécie que vivem fora de cidades. Já para um esquilo da América do Norte, o Sciurus niger, a FID "urbana" é apenas um sétimo da "rural".
Outros indícios intrigantes vêm do estudo de animais que, quando pequenos, receberam cuidados em cativeiro quando pequenos (em geral porque se trata de uma espécie ameaçada ou de indivíduos resgatados por ONGs) e depois são soltos na natureza.
Pode-se dizer que esses bichos são tranquilos –tranquilos demais, aliás. Exemplares da espécie de ganso Anser anser, por exemplo, quando criados nessas condições, apresentam níveis de hormônios do estresse abaixo do normal e são mortos por predadores com mais facilidade.
O temor dos pesquisadores é que esses fatores se juntem e favoreçam o aparecimento de populações selvagens "semidomesticadas", com organismo e comportamento menos preparados para lidar com ameaças de modo geral.
Os bichos, nesse caso, acabariam "transferindo" as reações calmas diante de seres humanos sem segundas intenções para pessoas e predadores que são ameaças reais. É esse ponto que ainda precisa ser investigado com mais cuidado, argumenta o grupo.
Um avanço simples seria seguir à risca uma regra que vale até para zoológicos: não alimente os animais.
É comum, porém, que os próprios guias e administradores de parques providenciem um bufê diário para os animais, como meio de garantir a presença de bichos interessantes e normalmente mais ariscos. Enquanto eles se refestelam, fica mais fácil chegar perto deles e tirar fotos.