Luís Francisco Carvalho Filho
Matadores e matanças
Nós nos acostumamos às matanças, uma guerra sangrenta, não declarada e bem pouco cirúrgica
Guerra, revolução e terror despertam instintos assassinos. A matança tende a ser cada vez mais cirúrgica nas ações militares, mas sempre haverá matadores.
Ao se proclamar autor do tiro que atingiu Osama bin Laden no Paquistão, o ex-marine Robert O'Neill revela um mundo estranho para aqueles que cultuam a paz. O soldado viola ao mesmo tempo códigos de segurança institucional e o pacto protetor do silêncio --o que se explicaria pela perda de vantagens que tinha quando estava na ativa-- e explora um feito que, em princípio, ofende a moral pública: criminosos devem ser detidos e julgados, não abatidos. Mesmo Bin Laden.
Enquanto militantes do Estado Islâmico vestem capuz para decepar a cabeça de jornalistas e soldados ocidentais, transmitindo em vídeo, apesar da covardia extrema, sinais de alma guerreira, O'Neill mostra o rosto na TV, conta detalhes do que viu e sentiu, reivindica status de celebridade e ajuda a aplacar o rancor deixado pelo 11 de Setembro.
Por que sentem orgulho de matar?
O Brasil teve suas guerras, e atrocidades pontuaram o rescaldo das batalhas. Uma das primeiras que se tem notícia é dos primórdios da colonização, em 1527. Corsários franceses, combatidos pelo governador Cristovão Jaques, são enterrados vivos até os ombros e martirizados a setas e tiros de espingarda.
Militares estrangeiros contratados pelo imperador Pedro 1º participam da fundação das Forças Armadas. O general francês Pedro Labatut manda fuzilar, em novembro de 1822, mais de 50 escravos rebeldes, estimulados pelos portugueses a lutar contra o Exército Pacificador da Bahia.
O relato do historiador paraense Domingos Raiol sobre o massacre no brigue Diligente, embarcação transformada em prisão pelo oficial inglês John Pascoe Grenfell na repressão a motins políticos de Belém, em outubro de 1823, impressiona. No porão do navio, sufocados pelo calor e pela falta de ar e espaço, os presos lançam-se uns contra os outros. O "frenesi" se acentua pelo derramamento de baldes de cal pelas escotilhas e tiros de fuzil desferidos a esmo pela guarnição: "Um monte de duzentos e cinquenta e dois corpos, mortos, lívidos, cobertos de sangue, dilacerados".
A República também tem legados de brutalidade. Euclides da Cunha descreve o tratamento de vítima da Guerra de Canudos (1896-7): "Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta a garganta, degolavam-na". Degola que é uma das marcas da Revolução Federalista do Rio Grande do Sul (1893-5): centenas de corpos enfileirados na beira das estradas, os pescoços abertos.
Labatut e Grenfell seriam isentados de culpa e integram nossa coleção de heróis. O comandante do massacre dos 111 presos do Carandiru em São Paulo (1992) seria declarado inocente, por agir no cumprimento do dever legal, conquistando uma cadeira de deputado.
Nós nos acostumamos às matanças, muitas vezes registradas em discretas notas de jornal.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou o número espantoso de 11.197 mortes atribuídas a policiais entre 2009 e 2013 ""média de seis pessoas atingidas por dia. Uma guerra sangrenta, não declarada, bem pouco cirúrgica e repleta de matadores. De lado a lado.