Foco
Restaurado, palacete de 1910 vira 'casa dos artistas' da velha guarda
Atores e cantores formam 'elenco' de moradores, que vão pagar aluguel simbólico
De passos lentos, o ator e diretor de teatro Sebastião Apolônio, 71, caminha pela primeira vez em uma casa que pode chamar de sua. "Agora, planejo viver até os 85", ironiza, olhando pela janela.
Do outro lado do batente, uma barulhenta av. São João, centro da capital. "É muita buzina, mas acostuma", diz, enquanto arruma os livros de teatro acumulados em mais de 50 anos de carreira.
Com mais de 200 peças no currículo --entre elas, o sucesso "Aí Vem o Dilúvio" (1980)--, Apolônio poderia dizer que sua casa, na verdade, é o teatro. "Mas ninguém vive em um teatro", brinca.
Na semana passada, ele foi o primeiro a se mudar para um dos 50 apartamentos do Palacete dos Artistas, conjunto habitacional da Prefeitura de São Paulo para artistas idosos.
O prédio, de 1910, foi totalmente restaurado. Nele, funcionava o Hotel Cineasta, que hospedou, em tempos áureos, nomes de sucesso como Dercy Gonçalves e Oscarito.
"O público acha que artista ganha muito dinheiro. O que eu ganhei deu para sobreviver. Comprar uma casa, já seria demais", diz Apolônio.
A "casa do artistas" de São Paulo demorou mais de dez anos para ficar pronta. A ideia foi da bailarina Ray Maria Moura, 57, que, em viagem à Europa, conheceu habitações para artistas idosos.
Ela apresentou a ideia à então prefeita Marta Suplicy (PT). Aí, começou uma novela enrolada, quase sem final.
Só em 2012 a obra começou, já no fim da gestão Gilberto Kassab (PSD). Foi entregue em dezembro deste ano.
A prefeitura teve que apressar a inauguração, porque temia que movimentos de moradia invadissem o edifício --a região é cercada por prédios ocupados por sem-teto.
SANTO FORTE
Para a inauguração, o cantor Raimundo José, 69, voz ainda intacta, levou um cartaz com uma foto sua da época em que fazia bastante sucesso, nos anos 1970.
Seu maior hit, "Santo Forte", foi gravado em 1977. "Vendeu muito em 1978...", conta, orgulhoso. No auge, ele dividiu o palco com os ícones Nelson Ned e Agnaldo Timóteo. Hoje, canta em casamentos.
Raimundo terá outro cantor como vizinho: Roberto Luna, 85, que tem mais de 60 LPs gravados. Luna atuou no clássico do cinema marginal "O Bandido da Luz Vermelha", de Rogério Sganzerla.
"Tem artista que consegue ganhar dinheiro, ficar rico, morar em mansões. Mas eu fui uma pessoa muito dedicada ao amor...", diz, enigmático. Depois, gargalha.
ESTÚPIDO CUPIDO
Para viver no prédio, os artistas vão pagar uma "locação social" --10% da renda familiar que declararem. Só pode morar no local quem ganha até três salários mínimos.
Os apartamentos continuam sendo da prefeitura, mas as famílias têm a garantia de permanência por tempo indeterminado.
Na prática, os imóveis só mudarão de mãos em caso de morte do morador original.
Conhecida por novelas como "Estúpido Cúpido" (Globo) e "Tocaia Grande" (Manchete), a comediante Vic Militello, 72, brinca com o futuro:
"Só vou sair do meu apartamento quando eu morrer. E aí, se tivermos um prefeito do PT, serei incinerada; se for do PSDB, vou virar linguiça, e se for do PV, viro adubo."