Tati Bernardi
Sonhos de uma noite insuportável
Esta noite sonhei um troço meio besta, mas um tanto interessante: a Folha agora tinha um crítico dos críticos
Tenho dormido muito mal. Meu prédio é tombado, metido a joia arquitetônica da cidade e não pode ter aquele layout externo grotesco dos ares-condicionados pendurados pra fora (na real, acho bom). Até tentei fazer uma gambiarra e deixar o split na área de serviço, com sua boca quente de dragão do bem voltada para uma janela escancarada. Contudo, a patuscada só faria sentido se o serviço pudesse ser executado nas paredes do meu quarto e do escritório. Resposta negativa: "é tudo viga, dona". Daí tentei na parede central da sala e...não pode, todos os canos do lavabo passam por ali. Em suma: tenho dormido muito mal. E, dada a loucura de dormir em sofrimento, sonhado coisas espetaculares.
Noite passada sonhei que eu tinha uns 16 anos (e era uma espécie de Lolitinha safada e alcoólatra, e não a adolescente nerd e careta que fui) e, por alguma razão divina, mamãe, preocupada com meus ataques sonâmbulos e constantes ao bar da casa (detalhe: nem eu bebo, nem a casa dos meus pais tinha um bar), contratou dois psicanalistas para me ajudar.
Eles vinham à noite e eram lindos, jovens e surfistas. Me atendiam sem camisa, com uma bermuda de motivos havaianos e a gente enchia a lata de vodca Absolut de pera bem gelada e ficava falando sobre Freud e mergulho no Caribe. Eu deitava entre os dois e eles me ensinavam "como me libertar das amarras familiares e da prova de física ótica" enquanto faziam carinho só com a ponta dos dedos na minha barriga. Obrigada, aquecimento global. Foi mal, urso polar, mas a coisa tá mesmo pegando fogo.
Esta noite sonhei um troço meio besta, mas um tanto interessante: a Folha agora tinha a coluna do crítico dos críticos. Um ombudsman cultural "das ruas" que valorizava os franceses cabeçudos e os americanos perfeccionistas, mas também tinha seus bons momentos com a comédia nacional. O crítico dos críticos se chamava Gilson Sampaio e sua "nota" era divertidíssima. Ao invés de arrogância intelectual ultrapassada, Gilson mandava a real com seu palavreado simplório e moderno.
Gilson dava um "falou tudo, truta" aos críticos que avaliaram bem filmes como "O Abutre", "Boyhood", "Azul é a Cor Mais Quente", "Beginners", "Frances Ha", "Casa Grande", "O Lobo Atrás da Porta", "Apenas o Fim" e "Nebraska". Mas dava um "se liga, mano grosseria!" para os que falavam na lata coisas como "tal comediante não tá com nada" (Oi? Um milhão na primeira semana do filme? Mais de dez anos em cartaz com uma peça que fez o Brasil inteiro rolar de rir?) e um "ah, coroa, nem tudo é Hamlet, abre esse coração" aos críticos que tachavam peças de sucesso com um chocho "humorista salva texto superficial" (vai ver o mesmo humorista com roteiro nheco --ele tem alguns no cinema-- pra ver se dá pra salvar, meu querido).
Sampaio, nesse sonho longuíssimo, avaliou ainda com um "cê só pode tar de brinks, maluco" os que curtiram filmes como "Na Natureza Selvagem" (a história besta de um garoto que fica gritando "society" no meio do mato? Quer ser realmente selvagem e mudar o mundo, vai trabalhar de bicicleta e enfrentar os ônibus na Paulista, meu amigo), "Infância Clandestina" (na cena em que a mãe canta durante o almoço em família eu fiquei com tanta vergonha alheia que, por segundos intermináveis, procurei em minha bolsa uma bala que não existia) e "8 Mulheres" (sorry, mas esse filme é chatopacarai). Sei que nosso herói (meu) misturou sucessos antigos com novidades, voz do povo com indiretas obtusas, mas sonho é sonho e, ainda mais com esse calor, a gente não controla.