Minha História G., 19
Estudando com o inimigo
A aluna de medicina G. denunciou por estupro seu ex-namorado, colega de turma na USP de Ribeirão Preto (SP); o processo está em andamento
Todos os meus colegas sabem que denunciei por estupro meu ex-namorado, que também é aluno do segundo ano de medicina na USP de Ribeirão. O serviço de psicologia da universidade foi falar com a classe, mas relataram como se fosse assédio.
Foi mais grave. Eu me ausentei por uma semana e T. se internou na unidade de psiquiatria do Hospital das Clínicas, onde foi preso em flagrante no mesmo dia em que me violentou, no campus.
Nós namoramos por quatro meses. Logo depois, comecei a namorar outro colega de turma, com quem estou até hoje. Quando contei que estava com outra pessoa, ele voltou a me importunar. Tinha ido ao psiquiatra, ameaçava se matar.
Todo mundo ficou preocupado. Ele quis conversar. Marquei na USP naquela sexta, 8 de agosto do ano passado. Ele insistiu para irmos para o lago. Entramos na trilha e ele só perguntava: "Quem é?". Contei que estava com B. Ele surtou. Bateu no chão, chutou árvore.
Um lado meu dizia: "Vai embora, ele tá louco". O outro me fez ficar, com medo de ele se matar. Ele se acalmou, sentou ao meu lado, ficou chorando e me xingava. Foi quando falou que queria transar. A despedida.
Eu disse: "Você tá louco?" Ele me puxou pelo cabelo e tentou me beijar. Tentei correr, ele me segurou e falou no meu ouvido: "Eu ainda não terminei". Abaixou minha calça. Senti o tecido da calcinha penetrando também.
Quanto mais eu dizia não, com mais força ele me penetrava. Eu dizia que tava me machucando e ele fazia: "Xihhh [mandando calar a boca]" e me penetrava com mais força. Não foi sexo consensual como ele alega. Depois que ejaculou, ele me largou e eu caí na terra.
Para voltar para a faculdade, no meio da trilha, ele ainda tentou me segurar. Gritei para ele não tocar mais em mim. "Você tem ideia do que fez lá atrás? Você me estuprou!". Ele rebateu: "Você queria. Tava molhada". Estava usando uma pomada para candidíase que teria funcionado como lubrificante.
Ele começou a chorar e a dizer: "O que foi que eu fiz?". Achei que tinha caído a ficha, mas de repente ele deu risada e disse que ninguém ia acreditar em mim.
Gritei que ia denunciá-lo. Mas percebi que poderia colocar minha vida em risco. Ainda sozinha com ele, falei: "Vamos esquecer isso".
Mais tranquilo, ele contou que ia para a UE [Unidade de Emergência, do Hospital das Clínicas] para não fazer algo contra a própria vida. Quando cheguei na faculdade, mandei uma mensagem para um amigo dele dizendo que T. tava muito doente.
Fui para a casa do meu namorado, que foi comigo à delegacia da mulher. Lá, foi insuportável. Você acha que vai ser acolhida, mas não. Comecei a ser estuprada às 16h30, o ato durou uns cinco minutos, mas só parei de ser violentada quando voltei para casa, à noite.
Do balcão, a escrivã perguntou o que me aconteceu, enquanto eu estava lá de pé, tremendo. Pedi uma cadeira. Ela arranjou um lugar para eu sentar, mas sempre com má vontade. Até que a delegada apareceu. Relatei o que tinha acontecido e ela mandou eu voltar outro dia para fazer uma representação e abrir o processo. Quando saí, elas fecharam a delegacia.
Nessa altura, minha mãe já tinha feito um escarcéu. Ligou para a faculdade. Dr. Carlotti [Carlos Carlotti Jr., diretor da Medicina da USP Ribeirão] foi me encontrar na delegacia. Ele me levou para fazer o corpo de delito.
No hospital, fiquei esperando o perito por quase três horas. E, quando apareceu, ele foi um grosso. Na maca, quando foi fazer o exame, foi um bruto, machucando ainda mais minhas partes íntimas.
Meu cunhado, que é policial, já tinha mobilizado a delegacia de plantão para que prendessem o T. em flagrante. Fui para lá dar novo depoimento. Só então fui pra casa.
Passei uma semana em Caraguatatuba com minha mãe. Quando voltei para Ribeirão, T. ainda estava preso no hospital, onde ficou algemado à cama até a soltura, dias depois. No prontuário está escrito depressão leve, mas o psiquiatra havia dito que ele estava no estágio cinco de suicídio, o mais alto.
O caso dividiu a turma. Ninguém veio falar nada comigo. Um dos amigos do T. começou a espalhar dados do processo entre os colegas e a dizer que eu menti. Para piorar, T. é o popular, enquanto eu sou mais reclusa. Ele vai às festas, bebe. Eu estava focada em estudar. Começou um papo na turma: ele é legal, ela, ninguém conhece.
Muita gente passou a assumir uma postura hostil.
Meu caso foi levado à CPI da Assembleia Legislativa. A mensagem é que eu deveria ficar quieta para não manchar a imagem da medicina.
Tem muito de "Clube do Bolinha" e de a sociedade ser machista. Não só os meninos. Me impressionou ver garotas com o mesmo discurso. Na CPI, quando leram meu depoimento, uma garota se levantou: "Eu não acredito em nada disso, porque ela namora outro". O que isso tem a ver? Autoriza a violência?
Não vou desistir. Entendo que para se sentirem seguros meus colegas prefiram acreditar que nada aconteceu. Se fosse com a mãe ou a irmã deles, iam pensar diferente.
T. está afastado da faculdade. Mesmo assim não consigo ir à USP sozinha. É difícil lidar com o medo. Suspeito de todos os homens.
Sexo ainda é um problema. Lembro de tudo, aí sinto dor.
Espero que ele seja condenado, mesmo sabendo que é uma pena de prisão [de seis a dez anos]. Tem gente que diz: "Ah, não foi tão grave assim!". Como? Tenho vontade de gritar: não foi só o meu corpo que ele violou, mas toda a confiança que eu tinha nele.
Cheguei a pensar em trancar a faculdade e ir embora. Mas ele não vai tomar mais nada de mim. Ninguém toca nos meus sonhos.
Apesar de tudo, não me arrependo de ter denunciado. Se eu pudesse falar com todas as vítimas de violência sexual, diria: "Vocês têm que ir até o fim". Muitas desistem, temendo enfrentar delegados, escrivães, peritos, amigos e família. Sei o quanto as vítimas se sentem desamparadas.
Tenho medo que T. volte à universidade. Como conviver com uma pessoa dessas? Espero que ele nunca se forme. Como um médico é um estuprador? Não pode. Temo por todas as mulheres que estão perto dele.