Mistura de cocaína e lança-perfume surge em relatos de mortes
Análise de boletins de ocorrência de casos suspeitos na capital paulista revela óbitos após combinação de drogas
Interação entre as duas substâncias é pouco estudada; segundo psicólogo, combinação tem crescido em festas
Parte das pessoas que morreram depois de usar cocaína na cidade de São Paulo em 2013 havia consumido também lança-perfume.
A informação consta dos boletins de ocorrência das mortes registradas pela polícia como "suspeitas". A lista completa dos registros foi obtida pela Folha por meio da Lei de Acesso à Informação.
Naquele ano, ao menos 144 mortes suspeitas na capital ocorreram após as vítimas consumirem cocaína --na maioria dos casos, o óbito decorreu de parada cardíaca.
Em 32 desses casos, as vítimas haviam combinado ou tinham o hábito de combinar cocaína com lança-perfume.
As informações dos boletins de ocorrência foram prestadas à polícia por parentes ou amigos dos mortos --os números reais, portanto, podem ser maiores, pois nem sempre a família tem conhecimento do uso de drogas.
Como os registros são anteriores à realização de exames pelo IML, eles não são conclusivos, mas podem indicar o fenômeno.
"O uso de lança-perfume com cocaína é uma moda muito perigosa que vem crescendo. Por ser ilegal e sem garantia, o usuário geralmente é enganado e, muitas vezes, nem lança-perfume [de verdade] acaba usando", diz o psicólogo Bruno Logan, que atua com redução de danos (política que minimiza os efeitos adversos de drogas sem impedir o consumo).
Ele conta que, em uma festa de música eletrônica em que trabalhou recentemente, ao menos três pessoas foram hospitalizadas após combinarem as duas substâncias --uma delas acabou morrendo.
Boa parte dos casos analisados pela Folha foi de jovens que tiveram ataques fulminantes do coração após a mistura, segundo a polícia.
"A lógica mais bem definida é a da interação da cocaína com o álcool. Não sabemos tanto sobre a interação da cocaína com outras drogas, como o lança-perfume", diz Ronaldo Laranjeira, psiquiatra e professor da Unifesp.
A mistura com álcool gera no sangue uma substância chamada cocaetileno, mais potente que a cocaína e mais tóxica para o organismo, principalmente para o coração, diz a psiquiatra da Unicamp Karina Diniz Oliveira.
EFEITO ANTAGÔNICO
Uma das hipóteses para explicar a mistura com lança-perfume, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem, é a busca por uma droga de efeito antagônico que amenize a "pilha" (agitação) que o pó causa no organismo.
Todos os vários tipos de lança-perfume --muitos feitos artesanalmente, com éter e clorofórmio-- causam um efeito depressor no sistema nervoso, o que aliviaria a sensação de agitação da cocaína.
Pode também ocorrer o inverso. "A pessoa tem o barato do lança-perfume, que a deixa meio para baixo, e usa a cocaína para restabelecer o vigor", explica Logan.
MAIS PESQUISAS
Segundo Laranjeira, o consumo de cocaína e crack (que é feito a partir da pasta base da mesma substância) está aumentando no Brasil.
Em 2012, quando foi divulgado o Lenad (Levantamento Nacional de Álcool e Drogas), 2,6 milhões de pessoas, ou cerca de 2% da população, disseram ter usado a droga nos 12 meses anteriores.
Outro estudo relacionado ao assunto, da psiquiatra Karina Oliveira, revela uma forte associação entre o uso de cocaína e ações violentas. Ela pesquisou o consumo da substância em pacientes que sofreram traumas, como ossos quebrados e concussões.