Ruy Goiaba
O inferno são os outros
Um lado se alia em nome da governabilidade; outro é só o Anticristo exercendo suas afinidades eletivas
O que você faz quando tem uma teoria toda montadinha, como castelinho de Lego, mas o chamado "mundo empírico" insiste em contradizê-la? Fácil: dá uma banana pro tal mundo empírico, ou seleciona dele só as pecinhas que se encaixem perfeitamente no seu castelo.
Esse processo humano, demasiado humano (como diria Nietzsche, o maluco do bigodão), está escancarado na atual campanha. Seja nas redes sociais, seja fora, o segundo turno virou o que uma amiga e eu chamamos de "bonde da dissonância cognitiva sem freio". O indivíduo crê em X, mas as informações que ele recebe dizem Y; para eliminar essa dissonância, vai lá e golpeia o Y a marteladas até virar X. Ou ignora o Y. Ou simplesmente diz que o Y também é X --e estamos conversados.
Isso ocorre dos dois lados. Cheerleaders de Aécio e seu "choque digestão" costumam passar por cima de coisas que vão do aecioporto até o currículo pouco elogiável do ex-governador no que diz respeito à liberdade de imprensa em seu Estado.
Na outra ponta, a da torcida organizada de Dilma, vemos gente dizendo, às vezes berrando, que não votar nela é inadmissível --e o argumento não é a política social ou econômica, mas as péssimas alianças do outro lado. A sério, sem rir.
Claro, é genial: a primeira coisa a fazer quando o PT passa 12 anos de braço dado com luminares do progressismo como Sarney, Collor, Renan Calheiros e Maluf, com o PP do Bolsonaro (aquele) na base aliada e Edir Macedo (aquele outro) dando a maior força, é lamentar as más companhias... dos outros. "Meus oligarcas são melhores que os seus! Meus pastores também!"
Não precisa explicar. Eu sei que um lado se alia em nome da governabilidade, sabe como é, realpolitik é difícil etc.; outro é só o Anticristo exercendo suas afinidades eletivas.
Aliás, é fácil encontrar tanto entre aecistas quanto entre dilmistas esse tipo de fiel fervoroso que vê Asmodeu em pessoa no adversário --e demonologia eleitoral é um tédio.
Vêm tempos difíceis pela frente, ganhe quem ganhar; mas é difícil crer que manter o governo ou trocá-lo signifique levar o país ao milagre ou ao apocalipse. A democracia é bem menos dramática que isso e tem mecanismos para corrigir os próprios problemas: "remember" Collor-92.
Acho, só acho, que a eleição ganharia se a gente usasse para os próprios candidatos o mesmo rigor com que avalia os rivais, em vez de ficar berrando da arquibancada; seria usar melhor a dissonância cognitiva. Mas deve ser culpa da idade, reconheço. Tô velho demais pra sacudir pompom e rebolar pra político.
João Santana está muito de parabéns: bateu tanto em Marina que levou água ao moinho de Aécio. Dilma pode ganhar, mas certamente não "plana no Olimpo". Seu marqueteiro bem poderia ir a um dicionário consultar o significado de "húbris".
Nada de saneamento básico e bem pouco de segurança pública nos debates dos candidatos. Quase não há problemas, apesar do nosso 112º lugar em saneamento entre 200 países e dos 50 mil homicídios por ano. Continuaremos aí, vivendo essa brasilidade brejeira (no meio do cocô, entre uma bala perdida e outra).