Ousadia olímpica
Equipe feminina de ciclismo do Afeganistão enfrenta insultos e riscos de agressão física ao treinar para competições internacionais
Em seis manhãs por semana, Zahra Alizada sai de bicicleta antes das 5h, pedalando em meio à luz cinzenta anterior à alvorada e desfrutando de breve momento de paz nas ruas usualmente frenéticas e empoeiradas de Cabul.
Os afegãos acordam cedo, e muitos deles ainda se escandalizam ao ver uma mulher em traje esportivo pedalando em alta velocidade uma bicicleta de competição. A equipe ciclística feminina do Afeganistão sabe disso porque, à medida que o tráfego se adensa mais perto do final de seu treinamento matutino, por volta das 7h, homens e meninos começam a insultá-las e, às vezes, atiram pedras e lixo nas ciclistas.
"Minha irmã me encoraja", diz Alizada, 16, uma das estrelas da equipe, que combina suas até quatro horas diárias de treinamento com a escola. "Se uma mulher caminha pela rua, as pessoas, muitas vezes, a incomodam. Já sair de bicicleta quer dizer que você certamente será incomodada. Mas é preciso aprender a ignorar o fato".
Assim, as mulheres acordam mais cedo que todo mundo no verão e inverno, e treinam depois do anoitecer no Ramadã, o mês do jejum religioso, percorrendo ruas vazias de um condomínio em construção.
"Ao andar de bicicleta, as meninas estão desafiando um grande tabu no Afeganistão", diz Shannon Galpin, norte-americana que está ajuda a treinar a equipe e, por meio de sua ONG, a Mountain2Mountain, obteve centenas de milhares de dólares em material esportivo e patrocínios para o grupo.
Shannon aposta no ciclismo como parte do movimento pelos direitos femininos, e seu coração claramente está com as meninas revolucionárias. "Bicicleta significa liberdade de movimento", diz.
O cabelo das ciclistas fica oculto sob os capacetes, mas, em seus trajes de treinamento, elas não diferem muito da equipe masculina, que pedala perto delas como uma proteção extraoficial.
"Sou fascinado pelo ciclismo desde pequena. Adoro a velocidade", diz Alizada. "Na maior parte do tempo, treino com os meninos, para ficar mais corajosa e mais forte".
Quem comanda esse esforço é o treinador Abdul Sadiq, cuja obsessão por ciclismo começou décadas atrás quando ele leu sobre um afegão que viajou de bicicleta à Índia para tentar conquistar uma estrela de Bollywood.
Sadiq passou anos caçando vistos para fazer a mesma jornada, mas ela nunca aconteceu. Em lugar disso, ele terminou como o primeiro e, por muitos anos, único ciclista profissional do Afeganistão.
"As pessoas me chamam de o pai do ciclismo' aqui", ele diz, sorrindo.
Sadiq tenta colocar as mulheres afegãs em bicicletas já há décadas, projeto interrompido pelo governo do Taleban, mas reiniciado com sua própria filha tão logo o regime linha dura foi derrubado.
Sob o domínio comunista, as mulheres muitas vezes usavam bicicletas para ir ao trabalho ou à escola, e o clube dele tinha mais mulheres ciclistas do que homens.
Mas quando a guerra civil varreu a cidade, ele se viu forçado a fechar as portas para proteger as mulheres. "Disse aos alunos que as mulheres não poderiam mais treinar por conta da situação de segurança. As meninas começaram a chorar, e essa é uma das minhas lembranças mais tristes", ele conta.
Os anos de conservadorismo deixaram sua marca, e a equipe feminina hoje é pequena, mas determinada: 15 ciclistas no total, e apenas seis delas na equipe nacional.
A maioria das demais são iniciantes. "Anos atrás, era fácil persuadir os pais a permitir que suas filhas andassem de bicicleta; agora há centenas de casos em que as mulheres querem pedalar, mas suas famílias recusam".
Muitas famílias dizem que se preocupam tanto com a segurança de suas filhas quanto com suas reputações. Em um país no qual meninas foram atacadas com ácido simplesmente por irem à escola, o perigo de praticar esportes em público vai além dos insultos ou do impacto de uma pedra bem mirada. No ano passado, uma das ciclistas foi jogada para fora da rua por um homem de moto e passou uma semana no hospital.
BRAVURA
A esperança de Alizada e do resto da equipe está nos Jogos de 2016 e em uma revolução silenciosa no país.
A primeira participação de uma ciclista afegã em competições internacionais ocorreu há só três anos. Elas ainda não conquistaram medalhas --ou mesmo concluíram algumas provas mais difíceis-- mas isso só serve para levá-las a treinar com mais afinco.
"As meninas não são competitivas", admite Galpin. "Muitas começaram a pedalar só nos últimos dois anos. Nem sempre terminam as provas mais longas, mas vencem a cada vez que largam em uma competição internacional porque estão mudando a face do esporte e demonstrando a bravura das mulheres afegãs".