Diversidade em campo
Primeira transgênero a disputar uma partida de competição oficial da Fifa, zagueira da Samoa Americana conta que conheceu a discriminação ao deixar o seu país e diz que injúrias em campo a levam a aplicar desarmes mais vigorosos
A seleção masculina de futebol de Samoa Americana, alcunhada "a pior do mundo" após derrota por 31 a 0 para a Austrália em 2002, começará no final de agosto a sua jornada nas eliminatórias da Oceania em busca de uma vaga na Copa de 2018.
De beque central joga Jaiyah Saelua, 1,88 m, 27 anos, que entrou para a história do futebol por um feito que não está relacionado à sua qualidade no esporte.
Em 2011, a Fifa a reconheceu como a primeira jogadora transgênero a disputar uma partida oficial de competição organizada pela entidade –no caso, as eliminatórias para a Copa no Brasil.
Jaiyah é uma "fa'afafine", termo samoano que significa "o caminho da mulher". Nascida homem, ela aprendeu desde criança a exercer tarefas socialmente associadas às mulheres, como cuidar da casa e ajudar a mãe, mas sem deixar de ajudar em tarefas masculinas, como cozinhar. Na Samoa, as "fa'afafine" são vistas como um terceiro gênero, vestem-se como mulheres, fazem concursos de beleza e, segundo Jaiyah, não são discriminadas.
"No Ocidente, as transgêneros são identificados com estereótipos como prostituição, uso de drogas, entre outros. Na Samoa, as "fa'afafine" são respeitadas como qualquer outro membro da sociedade, o que é motivo de orgulho para o país", conta Jaiyah em entrevista à Folha.
Ela acrescenta que só descobriu o que era discriminação quando saiu de seu país de 55 mil habitantes.
"Quando me mudei para o Havaí para estudar na faculdade, eles não me permitiam usar o banheiro feminino. O técnico de futebol não me deixou jogar porque não queria colocar a equipe em 'uma posição desconfortável'. A sociedade define lugares para homens e para mulheres. Estando entre esses dois gêneros, eu sentia que não havia espaço para mim", conta.
Em sua casa, Jaiyah tem uma carta que recebeu do presidente da Fifa, Joseph Blatter, em reconhecimento a seus esforços no rompimento de barreiras no futebol. "Esperei um convite para ver a Copa no Brasil, que não veio", diz, aos risos.
"Ser reconhecida como primeira transgênero a disputar as eliminatórias da Fifa me levou a questionar o porquê de isso não ter acontecido antes. Quantas Copas aconteceram? Por que as pessoas não aceitaram isso antes? O que há de errado neste mundo? Isso me fez valorizar mais ainda a minha cultura", reflete.
Em campo, não são raras às vezes que a abertura de sua cultura à diversidade entra em choque com a intolerância em outros países.
"Quando jogamos, eu sou um alvo. Os ataques fazem parte do esporte, e geralmente os adversários miram no ponto fraco. Mas o que eles não sabem é que não sou fraca e meu time não me vê dessa forma, então o tiro sai pela culatra", explica.
"Quando me xingam, eu me irrito, e meus desarmes ficam mais vigorosos. E eles percebem isso durante o jogo", diz a defensora.
JOGO LIMPO
Jaiyah, que se descreve como uma atleta de desarmes limpos ("recebi apenas um cartão amarelo em toda a carreira"), marcou sua aposentadoria para o final deste ano.
"Eu continuo jogando para erguer a bandeira dos transgêneros. O mundo inteiro estará assistindo às eliminatórias, e minha presença no torneio será uma extensão de esperança para os atletas transgêneros", conta.
É bastante improvável que os russos venham a conhecer Jaiyah pessoalmente em 2018, dado o amadorismo do futebol praticado na Samoa Americana. No entanto, o país- sede do próximo Mundial que tem se notabilizado negativamente pela repetição dos casos de discriminação no futebol teria muito a aprender com a defensora titular ("tirei um gol em cima da linha no último minuto") da primeira vitória samoana na história, em 2011, contra Tonga.
"Uma sociedade diversificada é uma sociedade bela. Quanto mais deixarmos que as pessoas vivam suas vidas das maneiras que elas se sentem felizes, mais paz e beleza nós teremos em nossas vidas", conclui a defensora.