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Contardo Calligaris
O dilema do celular ou da Petrobras
Mesmo se a denúncia fosse eleitoreira e o vazamento discutível, resta a pergunta: os fatos aconteceram?
Paulo Roberto Costa, ex-diretor de abastecimento da Petrobras, decidiu cooperar com as investigações da Operação Lava Jato --isso, em troca de uma diminuição de pena.
Na reta final das eleições, as acusações de Costa envolvem os partidos de governo --o PT, o PMDB e o PP-- num esquema que se tornou clássico: a Petrobras alocaria seus contratos gigantescos a grandes empresas cujas propinas financiariam os ditos partidos.
A essas acusações deprimentes, a própria presidente da República e candidata à reeleição, Dilma Rousseff, reagiu de três maneiras.
A indignação com o que parece ter acontecido (ou seja, com o objeto das denúncias) apareceu por último.
Primeiro, veio a observação de que "na véspera eleitoral, sempre querem dar um golpe": as denúncias seriam, como ela mesma disse, "eleitoreiras". Entendo essa reação, mas alguém poderia perguntar: quando existem acusações de corrupção, o melhor momento para divulgá-las não é justamente a eleição, para que o cidadão, na hora de votar, possa pesar e levar em conta essas denúncias?
Logo, veio a discussão sobre a legalidade dos "vazamentos". Para alguns juristas, o depoimento de Paulo Roberto Costa deveria permanecer secreto (até o fim das investigações, suponho). Para outros (entre os quais os integrantes do Ministério Público que atuam na Operação Lava Jato), não há "vazamento" algum, porque numa ação penal, os depoimentos são públicos --no interesse de todos (da sociedade, dos acusados e da Justiça).
Tendo a confiar nos integrantes do Ministério Público e a concordar com eles. Mas, no caso, isso é irrelevante: para poder colocar os termos do dilema que me interessa (e que interessa a muitos, como vamos ver a seguir), imaginemos que a gente concorde com os juristas que se opõem à divulgação das acusações e das investigações.
Estaríamos, então, na situação seguinte: 1) Há denúncias de um gigantesco esquema de corrupção, 2) A resposta dos envolvidos consistiria em dizer que a denúncia, hoje, é eleitoreira e que sua publicação é legalmente discutível. Imaginemos que a denúncia seja mesmo eleitoreira e que sua publicação seja discutível, isso não responde às perguntas básicas: Os fatos aconteceram? Quem foi responsável?
É fácil reconhecer aqui uma situação que já nos fez rir (e chorar) nos policiais norte-americanos. A polícia entrou no apartamento do suspeito, encontrou o cadáver da mocinha e as provas cabais de que o assassino é o dono da casa, todos escutaram isso no tribunal, todos sabem que o cara é culpado, mas ele vai ser solto: para isso, ele só vai precisar lembrar que a polícia entrou na sua casa sem mandato ou coisa que valha.
É a mesma lógica do argumento jurídico contra a divulgação das denúncias: não vamos falar do objeto das denúncias, pois, se elas "vazaram", elas não valem. Será?
Outro exemplo, próximo da experiência cotidiana moderna, é o dilema do celular. Você morre de ciúmes, e mal resiste à tentação de invadir o celular de seu consorte, verificar diálogos de WhatsApp, SMS, e-mails etc. Um dia você descobre a senha. Imaginemos que você encontre a prova de que seu outro é galinha ou, pior, ama outras pessoas. Você vai confrontar seu outro: as provas da infidelidade estão lá, indiscutíveis.
O que seu consorte vai responder? Claro, ele vai se indignar porque você não podia invadir sua privacidade: ele tem direito ao segredo, a uma área protegida de sua vida, e não há violência pior do que a que você usou etc.
Eu concordo com tudo isso. Acho que a gente não deve nunca invadir a privacidade de nosso consorte --até porque o ciúme é facilmente delirante e, portanto, toda descoberta levará você a uma única conclusão: ou você encontrará a prova que procurava ou, se não encontrar nada, isso será a prova de que o consorte tinha algo para esconder, visto que apagou seus rastos virtuais etc.
Agora, por mais que eu possa simpatizar com o consorte invadido, a pergunta fica: o outro não podia invadir minha privacidade, mas será que isso muda algo aos fatos que ele descobriu dessa forma? Um assassino se safou porque a polícia entrou na sua casa sem mandato, ele evitará a prisão, mas será que ele é inocente por isso?
Mesmo se o esquema Petrobras tivesse sido "vazado" por razões eleitoreiras, será que isso alteraria a gravidade do crime?