Crítica - Ensaio
Obra usa Bowie como ponto de partida para a reflexão histórica
'O Homem que Vendeu o Mundo' analisa referências usadas pelo artista britânico para criar personagens
O LIVRO TRAZ INCONTÁVEIS HISTÓRIAS E TEORIAS SOBRE AS MÚSICAS DO CAMALEÃO E REVELA OS SEGREDOS DE CADA LETRA E SUAS REFERÊNCIAS
ESPECIAL PARA A FOLHAEm 1994, o crítico musical inglês Ian MacDonald lançou um clássico da literatura sobre música pop, "Revolution in the Head", em que analisava, canção a canção, toda a obra dos Beatles. Alguns anos depois, um editor pediu a MacDonald que escrevesse um volume no mesmo formato sobre a obra de David Bowie. Mas o livro nunca saiu. Em 2003, MacDonald cometeu suicídio, aos 54 anos.
O editor chamou então o jornalista Peter Doggett para escrever o livro. E Doggett cumpriu a tarefa de forma brilhante. Seu "O Homem que Vendeu o Mundo" é muito mais que uma análise da obra de um artista: é uma reflexão sobre os anos 70, usando a música de Bowie como ponto de partida.
Começando com "Space Oddity" (1969) e terminando com o LP "Scary Monsters (and Super Creeps)" (1980), o autor mostra como Bowie radiografou, de forma brilhante, a década do "eu".
Muita gente vê Bowie como um artista visionário, sempre interessado no futuro. Mas é surpreendente perceber quantas de suas canções são autobiográficas.
Bowie --ou melhor, David Jones-- cresceu na dilapidada Londres do pós-guerra, sofreu com a esquizofrenia de parte da família e viu parentes internados em manicômios e lobotomizados. Não é à toa que criou, em sua música, um mundo imaginário dos mais cinzas.
REFERÊNCIAS
A cada canção analisada, Doggett teoriza sobre as influências de Bowie: o "Super-Homem" de Nietzsche, o futurismo sombrio de Ray Bradbury, a distopia de "Laranja Mecânica" de Burgess, o ocultismo de Aleister Crowley.
Para criar seus personagens mais famosos --Ziggy Stardust, Aladdin Sane--, Bowie usou pedaços de Andy Warhol, Judy Garland, Vince Taylor, musicais da Broadway e astros de Hollywood. O livro traz incontáveis histórias e teorias sobre as músicas do Camaleão e revela os segredos de cada letra e as referências usadas pelo músico.
SOMBRIO
O traço mais marcante de Bowie talvez seja o ceticismo. Sua falta de sintonia com os ideais hippies dos anos 1960 --paz, amor e LSD-- era total.
Tanto que, meses antes de Woodstock, quando 500 mil pessoas celebraram a "era do amor livre", Bowie já gravara "Space Oddity", canção sombria em que não só antecipava a chegada do homem à Lua, mas dizia que a vida no espaço seria tão triste e melancólica quanto a terrena. Era, nas palavras do próprio Bowie, um "antídoto contra a febre espacial".