38ª Mostra de Cinema de SP
De salto alto
Repórter se veste de mulher e circula pela Mostra para homenagear o cineasta Pedro Almodóvar, que ganhou retrospectiva
"Eu sou neguinha?", perguntava ao espelho. Batom vermelho, blusa vermelha, minissaia jeans, bolsa azul elétrico e salto alto com bolinhas brancas. Peruca: loira. Cores de Almodóvar.
As roupas emprestadas da repórter Anna Virginia Balloussier, da Folha, serviram direitinho. A minissaia caiu melhor em mim (palavras dela!).
Só faltava um nome de guerra. Feliciana Everalda? Ninguém merece. Muriel, inspiração primordial? Deixa pra Laerte. Recorri a uma infalível combinação: nome do primeiro bicho de estimação + nome da rua onde morou na infância. Deu Faísca Jorge. Adoro! Rainha do deserto daqui.
A caminho da Mostra, na calçada da avenida Rebouças, recebi a minha primeira e única cantada do dia. Um caminhoneiro, muque de peão. Três e meia da tarde: "Oi, coração", arriscou. Ganhou um beijinho jogado no ar. Correspondeu.
Em seu carrão, uma velha bem fofa vibrava. "Você está lindo", li os seus lábios através do vidro levantado. Também ganhou beijo.
Entrei no ônibus Anhangabaú/Pq. Continental, sentido centro. Sorrisos francos, alguns olhares de soslaio, risadinhas, a cordialidade paulistana de sempre. Só que não. A mesma cidade que faz gracejos espanca até a morte.
Desci quase em frente à biblioteca Mário de Andrade, que entrou neste ano para o circuito da Mostra. A sessão das 16h estava dez minutos atrasada. Era o filme título desta reportagem: "De Salto Alto" (Cine Olido, dia 24, 17h).
"Gostar de travestis é moderno. Mas é perigoso ser amigo delas", habla un personaje de la pelicula. E não é que o meu "look" é quase igual ao da travesti Letal do filme? Destino! Mas ninguém repara, a recepção do público da Mostra é blasé. Modernos.
Ser um homem feminino não fere o meu lado masculino, é o salto alto que fere! Andar do bar Riviera até o cine Belas Artes, do outro lado da rua, foi a minha maior marca. Depois apelei para a sandália rasteirinha amarela que levava estrategicamente na bolsa. Bolsa de mulher...
Um atendente do café do Belas Artes aprova meu visual, diz que está bem "Kika" (talvez pelo ar ingênuo), em referência a outro filme de Almodóvar. Tento comprar entrada para "Verão" (Itaú Augusta, dia 25, às 14h), de Colette Bothof, mas a sessão está lotada. Aproveito o espelho do saguão para retocar o batom e sigo para outra sessão.
EX-NAMORADA
No cine Itaú Frei Caneca, o colega Sandro Macedo, editor do "F5", não me reconhece e fica um pouco embaraçado quando vou de braços abertos em sua direção. "Não pode ser comigo", ele pensa. O mesmo acontece com muitos amigos que encontro (incluindo uma ex-namorada, lembro na hora de "Tudo sobre Minha Mãe").
Entro na primeira exibição do documentário "Yorimatã" (MIS, dia 22, 21h10). O bilheteiro pede: "O ingresso, senhor" (de minissaia? Sério?).
O filme conta com muita delicadeza a trajetória da dupla de compositoras Luhli e Lucina, que abriram os caminhos da canção popular independente e das relações interpessoais nos anos 1970, ao viver uma longeva e frutífera história de amor a três com o fotógrafo Luiz Fernando Borges da Fonseca.
Como disse o diretor Rafael Saar, "é importante mostrar o filme nesse momento de caretice e retrocesso na política nacional". Depois da sessão, fui rebatizado de Ceci Pane pelos amigos que encontrei.
Não havia um lugar melhor para terminar a noite. O Nick Bar, dentro do Teatro Oficina. "Ah, no Oficina é fácil, quero ver no bar do Paulo [boteco risca faca na Vila Romana]", protestou meu amigo Cabelo.
"Quero ver no Itaquerão!" Eu também. Quem sabe na próxima vez, neguinha. Neguinha que eu falo é nós.