Crítica - Teatro
Peça combina Beckett com Tchékhov e tenta subverter melodrama
Leis da probabilidade matemática influenciam texto com vigor filosófico encenado em SP pela CiaSenhas
Melhor começar por uma sinopse: "Obscura Fuga da Menina Apertando sobre o Peito um Lenço de Renda", da CiaSenhas, tem uma protagonista ausente, a filha de um casal. Ela fugiu de casa antes de a trama começar. Do exílio, a garota manda três cartas: uma para os pais, uma para uma amiga e outra para um namorado.
Por uma confusão com remetentes --e com a possibilidade de que os destinatários tenham sido trocados--, os personagens em cena acabam imobilizados por um fluxo de questões, que levam a outras questões que levam a outras questões. A ausência da menina é motriz da imaginação. Infinita, torna-se um câncer contaminando as relações que restaram.
Grosso modo, parece-se com equações da matemática combinatória: se a carta "x" tiver como destinatário "y", então assistiremos a tal coisa. Mas, se tiver como destinatário "z", tudo será revisto.
O problema é posto na mão dos personagens, que não disputam territórios, mas hipóteses: como sentir-se em relação a uma ausência se as possibilidades dependem também de outros vínculos?
Não é como em Beckett, em que a espera imobiliza os personagens. É Beckett com Tchékhov: se uma das três irmãs rompesse relações familiares, o que esse impulso de liberdade causaria aos amigos e parentes? Imobilidade?
A iluminação corre por trás de um cenário todo móvel (feito com janelas, mobília, batentes de portas sobre rodinhas) e projeta no chão uma passagem inexorável do tempo, enquanto os personagens são varridos para um buraco sem luz.
A peça, com texto do argentino Daniel Veronese, tem vigor filosófico. Porém, escrita, encenada e interpretada sob o vértice do melodrama, ainda que queira subverter o gênero, a trama chega ao fim um pouco colada nesta superfície. Principalmente na representação dos afetos.
Equações no drama são legais e, às vezes, traiçoeiras.