A balada de Ian
Novo romance de escritor britânico trata de dilemas morais na Justiça, a partir de casos polêmicos baseados em histórias reais
Numa história, quatro crianças, já órfãs de pai, decidem enterrar a mãe no jardim de casa ("The Cement Garden", 1978). Noutra, um casal britânico convencional se vê envolto num thriller gótico violento e de fundo sadomasoquista ("The Comfort of Strangers", 1981). Na mesma época, a BBC suspende a produção da peça "Solid Geometry" por considerar seu conteúdo obsceno.
Não é de estranhar que o romancista criador desses enredos, o britânico Ian McEwan, 66, fosse conhecido na juventude como Ian "macabro". O apelido pegou e lhe deu fama internacional de autor incômodo, perverso, interessado nos rincões da alma humana não iluminados pela razão.
A partir daí, embates entre sistemas racionais contra paixões e obsessões aparentemente inexplicáveis se transformaram no eixo de sua obra. "A Balada de Adam Henry", o 13º romance, que sai agora pela Companhia das Letras, traz o confronto com uma nova roupagem.
Agora, temos uma juíza da Alta Corte britânica diante de um caso delicado. Um hospital pede autorização para realizar uma transfusão de sangue num rapaz de 17 anos que está morrendo devido a uma leucemia. O procedimento, que poderia salvar sua vida, vai contra os valores da família, que pertence às Testemunhas de Jeová.
A princípio, Fiona Maye arma-se de argumentos seculares para defender o procedimento. A resistência lhe parece baseada em crenças primitivas. Mas, ao ver Adam Henry na cama de hospital, se deixa seduzir pelo encanto artístico do moribundo.
"Por meio da poesia e da música, cria-se um vínculo improvável entre essas duas pessoas de valores opostos. Já aconteceu antes em obras minhas, como em Amor Sem Fim' [1997], quando o personagem do stalker' se sente conectado ao protagonista pelo fato de terem vivido algo extremo juntos [um acidente de balão]. Agora, a juíza se vê seduzida pelo argumento irracional por causa da turbulência que atravessa na vida pessoal", diz o autor, por telefone, à Folha.
Com 50 e muitos, sem filhos, Maye enfrenta uma crise conjugal. O marido, Jack, também perto de completar 60, resolve que terá uma aventura sexual antes do fim de seus dias de virilidade.
PESQUISA
"Pode-se dizer que é um personagem que lembra tipos criados por Phillip Roth [escritor americano, autor de O Complexo de Portnoy'], guiados por nada menos que o próprio pênis. Esse é, na verdade, um gênero literário. Pensando bem, é o gênero que Roth praticou ao longo de toda a carreira [risos]."
Assim como fez para criar Henry Perowne, o neurocirurgião de "Sábado", Michael Beard, cientista de "Solar", ou a agente secreta que dá nome ao romance "Serena", Ian McEwan mergulhou na investigação do universo de seu personagem.
"Tenho amigos magistrados aposentados que me contaram muito dos bastidores da corte. Os casos mais polêmicos estão baseados em histórias reais, levemente alteradas no romance."
É o caso do casal judeu ortodoxo que, após o divórcio, tem desejos distintos sobre como educar as filhas. Ou o dos gêmeos que nasceram unidos, compartilhando órgãos. Católicos, os pais não autorizaram a separação cirúrgica dos bebês, que causaria a morte de um deles. A corte decidiu em favor do hospital e autorizou o procedimento contra a vontade dos pais.
PERSEGUIÇÃO
McEwan já conhecia bem a divisão familiar da corte britânica. Nos anos 1990, travou uma disputa ferrenha com a ex-mulher, Penny Allen. Acabou ganhando a guarda dos filhos, numa decisão que obrigaria Allen a nunca mais se pronunciar sobre a vida em comum de ambos.
A jornalista e escritora, porém, não se conforma com isso. Diz que McEwan baseia seus livros na história do casal. "Ele defende o livre discurso e eu não posso dizer nada? Ele dá várias entrevistas, e eu tenho minha carreira destruída por não poder me expressar?", disse ela, ao jornal britânico "Daily Mail".
Recentemente, Allen levantou-se, na plateia de um festival em Cheltenham, na Inglaterra, no meio da fala de McEwan: "Eu tenho uma pergunta. Por que você não fala às pessoas sobre o que tirou de mim?". Após momentos de constrangimento, foi levada para fora da sala.
"Não há nada mais em meus livros que lembre remotamente a experiência de meu casamento com ela. Não sei porque ela segue querendo discutir isso, e publicamente", diz McEwan.