Crítica drama
Filme trata de relações com rara sensibilidade
'Os Amigos', terceiro longa de ficção da diretora paulistana Lina Chamie, celebra com poesia a força dos afetos
Além do conturbado universo da cidade de São Paulo, Lina Chamie tem outra predileção em seus filmes: as relações humanas, que aborda com rara sensibilidade.
O terceiro longa de ficção da diretora paulistana conta um dia da vida de Théo (Marco Ricca), um solitário arquiteto de meia-idade.
De manhã, ele vai ao enterro do grande amigo de infância. A experiência da perda o leva a refletir sobre sua vida, no passado e no presente. Ele se dá conta de que nos últimos anos estava distante do amigo e não sabia da gravidade da doença que o acometera.
Nesse mergulho introspectivo, Théo parece alheio ao mundo real, como se constata nos rápidos diálogos com os colegas de trabalho e na longa conversa por telefone com Majú, vivida por Dira Paes, outra grande amiga.
A reflexão de Théo se faz também com olhares e silêncios, muitas vezes adensados pelas belíssimas composições de Saint-Saëns, Britten e Grieg que tomam a trilha sonora.
A narrativa alterna o presente com recordações da infância do arquiteto, especialmente os momentos passados com o amigo que acaba de perder. A ingenuidade daqueles dias distantes contrasta com a rudeza da vida adulta. Théo redescobre sua infância e percebe algo novo: algo do menino que foi ainda vive nele.
ODISSEIA
Além desses dois registros temporais, a narrativa é constantemente entrecortada por uma encenação da "Odisseia", o clássico poema de Homero, não por acaso feita por um elenco infantil.
Ancorado em um tempo mítico, fora do tempo real e de suas vicissitudes, o relato de Homero reverbera na jornada de Théo, pois também fala da morte de um amigo.
Ao mesmo tempo, o retorno para casa de Ulisses no poema tem paralelo no gesto de Théo de olhar para si mesmo, para sua infância.
A melancolia e a dor do arquiteto não dominam toda a trama, pois a afetividade e a delicadeza estão presentes nas relações que trava com a faxineira, com o garoto que encontra na loja de brinquedos --engraçadíssimo nas metáforas e na erudição com que fala de super-heróis--, com Majú e com seus dois filhos.
A divorciada Majú é a figura mais próxima de Théo e vive querendo apresentá-lo a uma amiga. É ao lado dela que ele experimenta os momentos mais intensos de cumplicidade e troca afetiva, apesar das angústias.
Sem a pretensão de dar respostas aos dramas do personagem, "Os Amigos" celebra com poesia a força dos afetos que sustentam a amizade --tema relativamente pouco explorado pelo cinema contemporâneo. (ALEXANDRE AGABITI FERNANDEZ)