Um papa contente em se comportar como um tiozinho de Buenos Aires
O papa Francisco não parou de produzir frases de efeito ao longo de quase dois anos de pontificado, mas uma delas merece destaque especial, talvez até mais do que o polêmico "Quem sou eu para julgar?" a respeito dos gays.
Foi pronunciada no Brasil, em espanhol, diante de uma plateia de jovens argentinos. "Quiero lío!" -algo como "quero bagunça!"-, disse o papa ao explicar para seus conterrâneos o rumo que queria dar ao catolicismo.
Ou melhor, o rumo que ele desejava que os fiéis dessem à sua experiência religiosa. Nessa fala, Francisco pedia que os jovens, e os católicos de modo geral, deixassem de ficar fechados em si mesmos e que "saíssem à rua", ainda que isso fosse complicar a vida de bispos e padres.
Em outras ocasiões, o papa disse coisas parecidas a religiosos, chegando a brincar que não se preocupassem caso recebessem uma carta de advertência da Congregação para a Doutrina da Fé (a antiga Inquisição) -o importante era achar modos ousados de evangelizar.
Ao menos nesse ponto, é difícil acusar Francisco de não praticar o que prega. Mais do que qualquer possível inovação doutrinal ou de disciplina, que ainda não veio e talvez não ocorra, a marca do pontífice é a ousadia em gestos e palavras, sem aparentar medo de ser mal interpretado.
É uma ousadia empregada, com frequência, para mostrar a disposição de sair da posição defensiva da Igreja diante do mundo atual. Papas, em geral, não respondem de improviso perguntas de jornalistas, nem telefonam para mães solteiras ou para ateus militantes italianos.
O apelo que Francisco tem até para quem não é religioso e estava acostumado a desancar a Igreja vem, em parte, dessa disposição de não ficar preso ao que um papa "deveria" fazer ou dizer. Muita gente, ao olhar para o papa e esperar ver um monarca, acabou vendo alguém que está perfeitamente contente em se comportar como um tiozinho de Buenos Aires.
E, claro, há a ênfase na pobreza, que começa pelo nome adotado pelo pontífice. Poucos santos são tão queridos quanto são Francisco de Assis, com seu amor pelos pobres e pela natureza. Quando o papa diz que o mercado financeiro produz uma "economia que mata" ou começa a escrever a primeira encíclica da história sobre o meio ambiente, até gente como Angelina Jolie começa a prestar atenção.
A questão é saber se tudo isso pode acabar se voltando contra as intenções reformistas do próprio Francisco. Dá para argumentar que o papa provou um pouco do próprio remédio em outubro de 2014. Na abertura de uma reunião dos bispos do mundo todo, realizada no Vaticano, a respeito de temas polêmicos como a comunhão para católicos divorciados, Francisco pediu que todos falassem com "parrhesía" -equivalente cristão da liberdade de expressão.
No fim das contas, esse direito acabou sendo exercido pelos bispos mais conservadores, que se opuseram com veemência a um documento feito pela organização do encontro que mostrava grande abertura aos fiéis divorciados e gays.
Desde então, as críticas abertas ao papa se intensificaram. Para alguns, o "lío" criado por ele, em vez de revigorar a Igreja, traz apenas confusão. Ainda é cedo para saber quem terá a última palavra.