Crítica - Teatro/Drama
Montagem de autora sueca usa figura de rainha para condensar força da mulher
Se o teatro preservou em si uma potência singular de compartilhamento entre artistas e espectador, a peça "Dissecar uma Nevasca", da sueca Sara Stridsberg, recorre a tal capacidade para conduzir o público pela sensação de existirmos em sujeitos que, não bastassem serem outros, atravessam os tempos.
A dramaturgia da peça retorna a um tipo de perspectiva subjetiva tradicional, em que a protagonista, no caso uma princesa em vias de torna-se rainha, permanece sempre em cena.
O espectador vai conhecer o desenrolar dos fatos através da ótica dela, como se dividíssemos inclusive seus delírios.
Conforme a vida da protagonista passa, exposta por uma encenação esquemática em sua construção e absolutamente orgânica na apresentação do resultado, a personagem despoja-se de perfil psicológico para assumir o arquétipo de uma força feminina devastadora em seu desnudamento frente os contratos político de um reino preventivamente regido por homens.
A peça é baseada na vida da rainha sueca Cristina (1626-1689), que herdou o trono aos seis anos e foi coroada aos 18.
Escolha precisa, temporalmente localizada no despertar do iluminismo, quando o sexo feminino, estereotipado sob a ótica literária dos homens, margeava a evocação da razão.
Embora a mulher apareça na peça como tenaz representação de uma paixão, redirecionando o fluxo do processo histórico, seu retrato não se dilui em esforço feminista.
Sob a autoridade dela, o reino se desmantela por causa do conflito que opõe interesses da corte e a recusa da personagem em casar-se e ter filhos.
Regida pela vontade, a força do sexo feminino concentrada na rainha Cristina torna-se então uma oposição à ordem. Eixo da devastação, ela se purifica na melancólica compreensão da relação entre destino e liberdade.
Sob direção da sueca Bim de Verdier, Nicole Cordery (no papel de rainha) e o elenco com brasileiros fazem performance essencial e trabalho de voz raro, nítido e ao mesmo tempo pouco volumoso.