Encenadora mescla cinema e teatro para realçar subjetividade
Inglesa Katie Mitchell dirige grupo alemão Schaubühne em adaptação de 'Senhorita Julia', de August Strindberg
Com sessões na Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, montagem mostra ponto de vista de personagem secundária
O formalismo do teatro entediou a inglesa Katie Mitchell, 60. Após passagens como diretora residente na Royal Shakespeare Company e na Royal Court Theatre London, a encenadora quis deixar de lado o tradicionalismo e investir em montagens experimentais. "Estava cansada da narrativa linear, daquele modelo de representação", conta.
Fez de seu "Waves" ("Ondas", 2007), baseado em Virginia Woolf, a primeira investida com vídeo --uma forma, explica ela, de enfatizar a subjetividade dos personagens.
Na Inglaterra, porém, seu experimentalismo polarizou a crítica, e ela buscou espaço em produções na Áustria e na Alemanha, onde a recepção foi bem mais efusiva.
Estreou em uma das principais companhias de Berlim, a Schaubühne, com "Senhorita Julia" (2012), que poderá ser vista a partir de sexta (13) na 2ª MITsp - Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.
Em sua versão para o texto do sueco August Strindberg (1849-1912), que dirige em parceria com o videoartista Leo Warner, Mitchell inverte a perspectiva da narrativa.
A história sobre a aristocrata Julia, que tem um caso com Jean, seu empregado, tem seu foco deslocado dos personagens centrais: a trama passa a ser vista pelos olhos da cozinheira Cristina (noiva de Jean).
E a intimidade da personagem, registrada ao vivo em vídeo, é projetada no alto do cenário --um trabalho meticuloso, que tenta se aproximar da estética do cinema. "O processo de vídeo é bastante exaustivo. Para criar dois minutos do que vemos em 'Senhorita Julia', levamos um dia inteiro", diz a diretora.
Leia a seguir trechos da entrevista que Mitchell concedeu à Folha, por telefone.
Folha - Por que começou a usar vídeos? Estava entediada com o teatro tradicional?
Katie Mitchell - Sim, eu definitivamente estava entediada. Eu ia montar "Waves" e queria que o romance gerasse uma nova forma na peça, mas não achava que seria necessariamente com vídeo. Ao tentar resolver o texto, criamos a forma. Os personagens não falavam, então filmamos planos bem próximos de seus rostos. Queríamos representar os pensamentos e a subjetividade de uma forma sutil.
É questionada se o que faz ainda é teatro ou se é cinema?
Sim. Mas é tudo ao vivo, você percebe a mão operando a câmera e isso é muito importante. E, se formos pensar, no século 20 o teatro não evolui muito além da representação figurativa. Já as artes plásticas tiveram muita abstração. Acho que, com vídeos, nos aproximamos de movimentos como o cubismo, de ver várias faces num mesmo plano.
O que a levou a trabalhar na na Alemanha?
Se você é um diretor na Europa, o país que você quer "conquistar" é a Alemanha, porque ali há um espectro muito grande de técnicas e gêneros. Além disso, eu sempre fui influenciada pelo teatro alemão, principalmente pela dança-teatro de Pina Bausch. No começo, eu tinha muito medo de trabalhar no país, achei que não teria sucesso. Até hoje fico nervosa.
Por que "Senhorita Julia"?
Na época eu não era muito conhecida na Alemanha, e a Schaubühne precisava de um título para vender a produção. Então me pediram que eu fizesse um clássico. Eu não estava muito interessada, mas eu percebi que poderia fazer uma desconstrução feminista da peça. Incluí no texto poemas da dinamarquesa Inger Christensen [1935-2009]. Quis criar uma tensão entre Strindberg, um escritor tradicionalmente misógino, e Christensen, uma feminista.
Por que contar a trama pelo ponto de vista da cozinheira?
Pensei: se quero fazer um exercício de subjetividade, não posso partir de um personagem principal. E peguei uma figura menos importante. Quando Cristina sai de um cômodo, por exemplo, não vemos alguns dos momentos mais famosos do drama, mas a seguimos até seu quarto.
O que inspirou a estética do "filme" na peça?
Há muito do [cineasta Ingmar] Bergman, na maneira de enfatizar coisas simples, como um piscar de olhos, e favorece a perspectiva feminina.