Crítica Mostra Internacional de Teatro
Peça recria 'Senhorita Julia' com brilhantismo
Nova montagem do clássico de Strindberg funde teatro e cinema e desloca eixo da trama para a perspectiva da criada
Embora desloque o eixo dramático do conhecido texto do dramaturgo August Strindberg (1849-1912) para a perspectiva da criada --no original, uma coadjuvante emudecida pela condição social--, mantém-se no título o nome da patroa.
"Senhorita Julia", adaptação do grupo alemão Schaubühne Am Lehniner Platz sob direção de Ketie Mitchell e Leo Warner, propõe assim um jogo que não se restringe a revelar um drama à margem.
Ao criar um novo núcleo dramático sem se desfazer do ponto central anterior (a relação de desejo e de poder entre Julia e seu empregado Jean), o espetáculo, que foi apresentado pela MITsp (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo) no último fim de semana, compõe um amplo sistema de desvios formais e narrativos.
Dramas são como malhas, com histórias que se cruzam indefinidamente. Muito mais do que evidenciar as costuras possíveis, a peça expande seus limites inclusive para uma participação menos oblíqua do espectador. Insere-o como parte de um processo histórico em andamento e o faz com brilhantismo.
Todo esse jogo é elaborado a partir de uma proposição multimídia: no centro do palco, interpreta-se a trajetória da criada Kristin, que em seus deslocamentos pela casa vai escutar e entrever fragmentos da história original.
Uma equipe de câmera e sonoplastas recria a representação, editando simultaneamente o material em vídeo, que é exibido em um telão.
A empregada permanece quase muda, e a série de imagens aproxima a plateia de um recorte empenhado em revelar o que há por trás de sua aparente submissão.
Cabe perguntar: o que está no núcleo do espetáculo? Quem observa ou quem é observado?A interface entre cinema e teatro? O telão exercendo o papel de uma autoridade, impondo a nova versão? A equipe de filmagem que expande o campo de visão na mesma medida em que imprime um olhar vigilante e opressor sobre a personagem?
Talvez esta seja uma peça sem núcleo, onde ruídos exerçam sobre atores uma multiplicidade de forças, moldando-nos todos.
Por trás das dúvidas permanece o essencial: "Senhorita Júlia" expôs em 1888 a visão poética masculina de Strindberg sobre a mulher do século 19 e seu desejo de emancipação. A nova versão faz o complemento. Revela o olhar não da mulher rica, mas da oprimida, ou da criada que permanecia inerte até então.