Crítica cinema/comédia
Longa transita entre diferentes gêneros e bagunça estereótipos
Em 'Amor à Primeira Briga', espectador flutua pela trama sem saber aonde vai dar e não é refém de emoção calculada
O tratamento lúdico e próximo do absurdo é prova da imaginação transbordante do jovem cineasta
Comédia? Romance? Filme de dupla? Ação? Aventura? Fantasia? Apocalipse? "Amor à Primeira Briga" tem situações e ingredientes destes diversos gêneros, mas se permite não caber num só.
Apesar do trapaceiro título brasileiro, o primeiro longa do francês Thomas Cailley é muito mais que um filme de amor.
"Os Combatentes", seu título original, revela com mais precisão o programa de Cailley, que consiste, em parte, em imaginar como Adão e Eva sobreviveram à perda do paraíso. Em vez de mergulhar na profundidade que a hipótese sugere, o jovem diretor e roteirista trata tudo com um afiado senso de burlesco e de estranhamento.
"Os Combatentes" guarda também maior sentido por que é assim que Arnaud e Madeleine se conhecem, ao acaso na praia, postos corpo a corpo numa cena de luta.
Ele é um garoto indeciso, fragilizado pela morte recente do pai, mimado pela mãe e acuado pelo irmão mais velho, que reclama seu engajamento nos trabalhos de carpintaria da empresa familiar.
Ela é uma garota riquinha, que treina sem parar, tem o corpo robusto e quer se alistar num programa militar de sobrevivência, pois acredita na iminência do fim do mundo.
Logo, a cena de combate em que eles se conhecem reúne dois personagens de perfis contrapostos, ou seja, desenhados para dar sustentação a uma comédia de opostos ou a um romance de atritos, mistura inspirada no humor crítico de Howard Hawks.
Mas a apresentação também funciona para desorganizar os estereótipos de virilidade e fragilidade e confundir os lugares associados às imagens de homem e mulher.
Assim como transita de um gênero cinematográfico a outro, "Amor à Primeira Briga" também embaralha as marcas que distinguem os gêneros masculino e feminino.
Essa indeterminação oferece ao filme uma liberdade incomum no cinema contemporâneo. Por um lado, seus personagens escapam da tipificação excessiva, em que todos têm de representar, simbolizar ou oferecer âncoras de identidade.
O espectador, por sua vez, flutua pelos blocos da narrativa sem conseguir prever aonde o fio vai dar e sem se sentir refém de emoções calculadas.
Num sentido, Cailley aborda com habilidade ficcional o tema abstrato da indecisão ou da crise que envolve todos a cada momento de escolha.
Mais que uma alegoria sobre o fim da adolescência, "Amor à Primeira Briga" amplifica aquele sentimento de limbo, valorizando as incertezas. Claro que o resultado poderia ter sido insuficiente se o filme se dispersasse em meio a tantas possibilidades, mas a cada passo ele se revigora pela paixão do risco.
Além disso, o tratamento lúdico e sempre próximo do absurdo é prova de uma imaginação transbordante.
Ou seja, razões suficientes para saudar a aparição de um jovem cineasta mais interessado no poder das histórias do que na certeza das teses.