É Tudo Verdade
Delação premiada (com Oscar)
Exibido no festival, 'Cidadãoquatro', documentário sobre Edward Snowden ganhador do troféu máximo do cinema, explora bastidores do vazamento de informações que detonou um escândalo global
Em janeiro de 2013, a documentarista americana Laura Poitras recebeu um e-mail criptografado de alguém que se intitulava "Citizenfour".
"De agora em diante, toda a fronteira pela qual você passar, ligação que fizer, site que visitar estará nas mãos de um sistema cujo alcance é ilimitado --mas cujas salvaguardas, não", dizia o autor. "Peço apenas que você faça com que essas informações cheguem ao público americano."
A mensagem, sabe-se hoje, era de Edward Snowden, então ainda um analista de 29 anos na NSA, a agência de segurança americana.
E as "informações" a que ele se referia eram a massa de documentos que revelaram a vigilância massiva e preventiva empregada pelos governos americano e britânico --e que seriam divulgados pela própria Poitras e pelo jornalista Glenn Greenwald.
São as palavras do e-mail, narradas em tom sombrio por Poitras, que abrem "Citizenfour", documentário que levou o Oscar neste ano e que passará no festival É Tudo Verdade neste domingo (12) --no Brasil, virou "Cidadãoquatro". Ele é uma espécie de "making of" dos vazamentos e do do escândalo global que causaram.
O filme registra a primeira filmagem de Snowden por Poitras, quando ela liga a câmara minutos depois de conhecê-lo em Hong Kong, onde ela e Greenwald foram encontrá-lo depois de uma série de mensagens iniciadas com aquele primeiro e-mail.
Quase que o tempo todo sentado sobre a cama de seu quarto de hotel, Snowden oscila no filme entre um homem confiante, que usa um articulado discurso para justificar a necessidade de se sacrificar em prol dos valores democráticos em que acredita, e um jovem levemente paranoico, de riso nervoso e preocupado, com os cabelos desarrumados.
Com um computador no colo, ele acompanha as repercussões na mídia dos primeiros documentos que vaza. Parece não acreditar no que vê.
"Ficamos chocados que ele fosse tão jovem. Depois, ficamos realmente chocados com quão calmo e articulado ele era, dado o que estava arriscando", disse Poitras, em entrevista à Folha.
"Qualquer um estaria supernervoso ao saber que sua vida acabou. Mas ele estava supercalmo. Ele passou muito tempo tomando essa decisão. Acho que disse: 'Olha, não há o que fazer, acabou'. Ele só queria nos dar o que pudesse no tempo que tinha."
A própria Poitras conhece o custo de investir contra os segredos do Estado americano.
Após produzir outros filmes sobre violações cometidas por seu país supostamente em nome da manutenção da segurança no mundo pós-11 de Setembro, ela passou a ser arbitrariamente parada em aeroportos americanos para buscas sem motivo específico.
Um daqueles filmes, "My Country, My Country" (2006,) sobre o Iraque após a ocupação americana, foi indicado ao Oscar, mas não teve o sucesso de "Cidadãoquatro".
"Há uma tradição de filmes antiestablishment em Hollywood. Mas eu também fiquei surpresa. Havia uma alta chance de ele ser rejeitado porque existe muito apoio a Obama em Hollywood."
'BRASIL É UM EXEMPLO'
Hoje, ela e Snowden, atualmente exilado na Rússia de Putin (país onde ele não queria estar, segundo a diretora) continuam conversando.
"Ele me contatou do nada e tomou a decisão de que a sua vida estava nas minhas mãos. Se eu cometesse um erro, ele terminaria na prisão ou pior. Foi mais ou menos esse tipo de relacionamento. Não sei se há uma palavra para isso."
"Cidadãoquatro", diz Poitras, "é mais um filme sobre coragem do que um filme sobre vigilância". "Quando as pessoas fazem isso [delatam], elas desistem de tudo. Toda a carreira delas, amizades, relacionamentos se despedaçam."
Para a diretora, quase dois anos depois dos vazamentos, há vários sinais de que aumentou oferta de criptografia, a proteção de informações por meio de códigos. "Mas a coisa mais desanimadora é a resposta dos governos", diz.
O Brasil é um exemplo positivo de resistência, afirma, mas Dilma Rouseff deveria voltar atrás e dar asilo político a Snowden. "A NSA tem operado em total impunidade no mundo todo. Governos deveriam pressionar os EUA."