Serafina
Macunaíma de quatro
Enquanto o escritor Mário de Andrade volta à berlinda com a polêmica sobre sua sexualidade, Serafina disseca em quatro partes a criação mais célebre do autor modernista, o herói sem caráter que pulou da rede para as páginas, telas e palcos
1 Macunaíma
No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. E, se não fosse hoje a constelação da Ursa Maior (desculpem o spoiler), deveria ser um dos convidados da Festa Literária de Paraty, já que é a principal criação do homenageado da vez, Mário de Andrade. Mas, se ainda assim decidissem chamá-lo para uma conferência, é provável que secundasse "Ai! Que preguiça!" e deixasse os convidados jururus.
Mário nasceu em São Paulo, cidade lambida pelo igarapé Tietê, em 1893, e morreu também por aqui há 70 anos -data que suscita o tema da Flip, o lançamento de livros e volumes de correspondências, a reabertura de sua casa na Barra Funda, todas essas homenagens. Mário dizia que era 300, e Macunaíma não fica atrás. Pois nasceu no mato-virgem e também em Araraquara.
Foi lá que, no fim de 1926, na chácara do tio Pio, Mário sentou numa rede por seis dias e, numa espécie de transe, "entre cigarros e cigarras", pariu "Macunaíma - O Herói Sem Nenhum Caráter", que viraria livro quase dois anos depois. Mas não fique sarapantado ao descobrir que o herói nasceu ainda em outro lugar, porém.
"Ele é venezuelano", diz Carlos Augusto Calil, curador da mostra "A Morada do Coração Perdido" na Casa Mário de Andrade. Entre suas viagens pelo país e sua intensa pesquisa do folclore e dos costumes brasileiros, Mário se encantou com a obra científica "Vom Roraima zum Orinoco" (De Roraima ao Orinoco), do etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), que relatava a história do mito indígena da Venezuela com aquele mesmo nome.
"Ele não tinha nenhum problema com isso. Assumia que tinha plagiado mesmo", diz Eduardo Jardim, autor da biografia de Mário "Eu Sou Trezentos". O próprio autor se explicou: "Resolvi escrever porque fiquei desesperado de comoção lírica, quando percebi que Macunaíma era um herói sem nenhum caráter nem moral nem psicológico, achei isso enormemente comovente nem sei por quê". Outros pedaços da bricolagem que é Macunaíma foram colhidos de livros de Couto de Magalhães (1837-1898), Capistrano de Abreu (1853-1927), contos, lendas, mitos e canções do folclore brasileiro.
Essa mistureba, a que o escritor chamou rapsódia, virou a história cheia de humor do índio que nasce preto e vira branco. Se apaixona por Ci, a Mãe do Mato, e logo perde sua amada. Ganha dela o talismã muiraquitã e logo também o perde para o vilão, Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã comedor de gente. Vai a São Paulo, tenta recuperar o talismã, viaja por todo o Brasil, brinca com muitas e várias cunhãs até acabar sozinho e virar constelação.
Entre os modernistas que lideraram a Semana de Arte Moderna de 1922, Mário de Andrade era tido como o mais intelectual. Autodidata, era poeta, músico, professor, crítico e um dedicado pesquisador do folclore e da cultura popular. "Macunaíma é o coroamento e, do ponto de vista literário, a mais bela expressão dos propósitos modernistas do segundo tempo do movimento", escreve Eduardo Jardim em "Eu Sou Trezentos".
Quase 90 anos depois de sair pelo mundo, o livro faz vestibulandos quebrarem cabeças com suas palavras difíceis e acadêmicos ainda se dedicam a dissecá-lo. Especialistas destacam a tentativa de "desregionalizar" o Brasil e propor uma cultura nacional ao país sem caráter, sem identidade, a aproximação das linguagens escrita e falada e a fuga do espaço-tempo convencional.
Os 800 exemplares da primeira edição saíram do bolso do próprio Mário, que enviava os livros pelo correio para amigos como Manuel Bandeira (1886-1968) e pedia que os levassem até a livraria mais próxima. Mal imaginava que seu piá viraria um clássico da literatura brasileira, além de filme, peça de teatro e até enredo de escola de samba.
2 O Cinema
Uma feita Macunaíma pulou para as telas e ampliou sua fama. Era Grande Otelo (1915-1993) quando negro, e Paulo José quando branco. Quando um vira o outro, o personagem brada: "Fiquei branco, fiquei lindo!"
Paulo conta que, ao convidá-lo, o diretor Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988) propôs que ele operasse o nariz: "parecem dois, um fino, se visto de lado, outro batatudo, se visto de frente. Irreconciliáveis". O ator se negou, mas ganhou o papel.
"Estava num lugar muito especial, dividindo a personagem com o Grande Otelo, o próprio Macunaíma", escreve Paulo em entrevista por e-mail. "Só tinha que imitá-lo, já vinha pronto. Era fazer as cenas do modo mais natural de ser do Otelo."
O filme foi lançado em 1969, "tempos difíceis", disse Eduardo Escorel, montador do longa e parente distante de Mário em debate recente sobre o tema.
"Entre 1967, quando o roteiro foi escrito, e o lançamento, em 1969, o regime político se radicalizou." Conhecido pela peraltagem, Macunaíma ganhou tons políticos no cinema: Joaquim
Pedro transforma Ci, a amada amazona do herói, em guerrilheira e inclui a frase "é cada um por si e Deus contra". "No filme, ele não sobe ao céu e vira estrela. Não há lugar para esse fim na versão pessimista", disse Eduardo.
Pra Macunaíma, o filme, passar pela censura foi um furdunço. O parecer anunciava sem pudor: "Desconhecemos a obra original de Mário de Andrade, autor tido como rebelde às tradições sociais em geral". E depois resumia a trama como "a história de um preto que vira branco e vai para a cidade dar vazão aos seus instintos sexuais, voltando depois para a selva de onde viera".
Mas o filme fez sucesso no Festival de Veneza. E Joaquim usou a celebração internacional para defender seu Macunaíma da censura no Brasil. Dos 16 cortes impostos inicialmente, a maioria de nus, a censura se contentou só com três. E o diretor poderia decidir o que cortar. Filas extensas se formaram nos cinemas, e a obra voltou às livrarias.
Joaquim explicou na época como fez pegar seu filme: "Tive a intenção deliberada de procurar uma comunicação popular tão espontânea, tão imediata, como a chanchada. Ele procura ser feito do povo para o povo, é a orquestração mais simples possível".
Chamado pelo jornal "The New York Times" de "artefato gloriosamente demente do seu tempo" e comparado a
Fellini e John Waters, nosso herói foi parar ainda outra vez nos cinemas. Numa versão hoje perdida e quase desconhecida, o diretor Paulo Veríssimo promoveu em "Exu-Piá, Coração de Macunaíma", de 1987, o encontro entre o Macunaíma que era Grande Otelo, do filme de 1969, e o Macunaíma que era Cacá Carvalho, da peça encenada a partir de 1978.
3 O Teatro
O herói caiu do céu no colo do diretor Antunes Filho. É ele quem diz. "Eu estava inserido no teatro comercial, mas aquilo não correspondia ao que eu queria do teatro. O então diretor da Aliança Francesa me convenceu a encenar o Macunaíma. Ali, mudei meu rumo", diz Antunes, 85, que só conhecia o livro "de resumo escolar".
Formou um grupo e acamparam num teatro em ruínas, em São Paulo, durante meses, "com o elenco pelado pra cima e pra baixo". Atores escreviam cenas; cenários e adereços eram feitos de jornal.
E Macunaíma era um Cacá Carvalho de 25 anos, pronto pra voltar pra querência dele, Belém, e que só foi ao teste acompanhar uma amiga. Acabou aprovado. "Antunes dizia que, para ser Macunaíma, eu devia ser moleque como fui na infância e imperioso como era como adulto."
E levava Cacá ao Masp para ver quadros de Portinari, para buscar inspiração em outros modernistas. Incentivava ainda os atores a fazerem uma pesquisa intensa dos hábitos indígenas. Viam documentários para imitar seus movimentos e tinham encontros com o sertanista Orlando Villas Bôas (1914-2002).
"E, quando uma tribo de índios xavantes veio fazer uma apresentação no Theatro Municipal, fomos incentivados a interagir com eles, que ficaram hospedados no ginásio do Ibirapuera", diz a atriz Mirtes Mesquita, 60, que estava no elenco e fez um estudo acadêmico sobre a adaptação que entrou para a história do teatro nacional.
Se o Macunaíma do cinema surgiu no auge da repressão da ditadura, o do teatro marcava o início do fim. "Aquelas mulheres nuas em cena eram o prenúncio da abertura que viria logo depois. Fazer aquela obra era um grito de liberdade", diz Antunes. "O topless começou a ser discutido depois da peça, era novidade. Tudo começou ali."
4 O Sexo
O vestibular não pergunta, mas, se tem uma coisa que Macunaíma é, é safado. "Brincar" é o eufemismo que o autor usa para falar de sexo o tempo todo. Brinca-se na rede, na jangada, no mato, no rio. Mas o trecho mais obsceno da obra foi cortado da primeira para a segunda edição (leia ao lado).
"Talvez seja a parte que melhor se ajusta ao conceito de pornografia literária, na acepção moderna do termo. Nela, o escritor se entrega à tarefa de descrever posições lascivas sem buscar justificativa fora do próprio sexo", diz Eliane Robert Moraes, professora de literatura da USP e organizadora da "Antologia da Poesia Erótica Brasileira", para quem Macunaíma é "um texto fundante da nossa erótica literária".
Induzido pelo amigo e escritor Manuel Bandeira, um dos principais interlocutores de suas cartas, Mário capricha na narração de malabarismos sexuais de Macunaíma e Ci na rede, mas logo se arrepende. "Ele pratica autocensura. Tira a cena, escabrosa e hilária, que causou enorme choque na época, para não dar pretexto para o livro ser considerado pornográfico", diz Calil.
Assim como balançava entre o instinto e a autocensura, Mário vivia dividido. "Ele tinha uma personalidade extremamente sensual e, ao mesmo tempo, era muito intelectual. Era dilacerado por essas forças em oposição", diz o biógrafo Eduardo Jardim. Ele conta que o escritor se dizia um pansexual, que poderia se apaixonar até por uma árvore.
A longa polêmica sobre sua homossexualidade talvez dê uma descansada agora que veio à tona uma carta do autor, guardada há décadas, em que fala mais abertamente, mas sem brincadeiras e furunfunfuns, sobre sua opção sexual.
"Como a homossexualidade de Mário de Andrade ficou intocada durante muito tempo, tornou-se um tabu, e sua verve imoral terminou por ficar também na sombra", diz Eliane. "As duas coisas andaram juntas e talvez tenha chegado o momento de liberar a primeira, de ordem pessoal, para se reconhecer a qualidade da segunda,de ordem estética."
Tem mais não.
"...Um geito engraçado era enrolar a rede bem e no rolo elástico sentados frente a frente brincarem se equilibrando no ar. O medo de cair condimentava o prazer e as mais das vezes quando o equilibrio faltava os dois despencavam no chão ás gargalhadas desenlaçados pra rir.
Outras feitas Ci balançava sozinha na rede, estendida de atravessado. Macunaíma convexando o corpo entre dois galhos baixos em frente buscava acertar no alvo o uaquizê. Acertava bem. E aos embalanços chegando e partindo a brincadeira esquentava até que não agüentando mais o imperador partia também no vôo da rede num embalanço final.
Outras feitas mais raras e mais desejadas o heroi jurava pela memória da mãi que não havia de ser perverso. Então Ci enrolando os braços e as pernas nas varandas da rede numa reviravolta ficava esfregando o chão. Macunaíma vinha por debaixo, enganchava os pés nos pés da companheira, as mãos nas mãos e se erguendo do chão com esfôrço, principiavam brincando assim. Dava uma angustia de proibição êsse geito de brincar. Carecia de um esfôrço tamanho nos músculos todos se sustentando, o corpo do heroi sempre chamado sempre puxado pelo peso da Terra. E quando a felicidade estava para dar flor o heroi não se vencia nunca, mandando juramento passear. Abria alargado os braços e as pernas, as varandas da rede afrouxavam e os companheiros sem apoio tombavam com baque seco no chão. Era milhor que Vei, a Sol!
Ci tiririca se erguia sangrando e dava sovas tremendas no heroi. Macunaíma adormecia no chão entre pauladas, não podendo viver mais de tanta felicidade. Era assim..."