Crítica livro/poesia
Com versos densos, Eucanaã perturba e diverte em 'Escuta'
Sétimo livro de Eucanaã Ferraz, "Escuta" é cercado por uma série de quatro poemas chamada "Orelhas". Dois deles abrem o livro e outros dois o fecham. Se assim fazem o retrato evidente da escuta que o título pronuncia, também atraem e repelem o leitor do ambiente tenso que se instala nas páginas desse belo livro.
Há quem diga que toda a poesia é sobre --ou sob ou diante ou contra-- o amor e a morte. Com Eucanaã, desta vez, toda a reverência que tais "temas" suscitam é rejeitada por uma consciência que embarca num veículo qualquer --carro, ônibus, avião, mais ainda no próprio corpo e sua imaginação-- e se espalha geograficamente para despistar qualquer esforço de trancar a vida nas entranhas.
Durante todo o percurso de "Escuta", os poemas aderem a locais precisos do mapa: Leopoldina, Brasília, Alentejo, Umuarama, Santiago e Buenos Aires, entre outros. Mas tudo pode ser engano no tabuleiro armado por Eucanaã, como sugere o poema "Geografia", em que os países não passam de cores num globo terrestre ao alcance de um beijo, bem como "Nem", em que o poeta se esquiva do real: "Peço desculpas à população de Maringá cidade/ que sequer conheço".
Quem passeou por seus livros anteriores --"Livro Primeiro" (1990), "Martelo" (1997), "Desassombro" (2001), "Rua do Mundo" (2004), "Cinemateca" (2008) e "Sentimental" (2012) --já sabe estar diante de um poeta em que não há antagonismo entre a expressão precisa e uma espécie rara, entre seus pares, de afeto --apego e entrega-- dedicado àquilo que quer preservar na memória dos versos.
Num texto sobre o livro anterior de Eucanaã, Leonardo Gandolfi já chamava a atenção para o fato de que, nessa poética, "autoconsciência textual não entra em conflito com voz confessional", porque domina "a oscilação entre um registro que transforma franqueza psicológica em fraqueza de expressão e outro registro que funde nome e coisa, sem distinção entre pensar e sentir".
Nesse sentido, Eucanaã continua "sentimental", mas me parece que agora tudo se dá de modo ainda mais agudo: "Não é uma questão de língua./ É uma questão de dentes?/ Os nomes tocam nas coisas/ mas não conseguem mordê-las" ("Santiaguino").
De fato, os versos de Eucanaã agora querem morder. Em "Escuta", convivem poemas de versos mais longos, que perturbam também em razão de aspectos formais (a ausência de vírgulas, por exemplo, que desorienta o leitor) e poemas mais concisos, de toque rápido, mas igualmente densos, ásperos, tensos por baixo até mesmo da camada de humor que aqui e ali surpreende na leitura.
Talvez, por isso, o leitor chega ao final de "Escuta" disposto a acolher o conselho de Eucanaã: "palavras/ tantas vezes obras que pobres não valem a tinta/ de novamente serem ditas; dizê-las, no poema;/ eu te digo que é preciso perdoá-las".
ESCUTA
AUTOR Eucanaã Ferraz
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 34,90 (136 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo