Opinião
Em 'Dias de Felicidade', Leilah Assumpção faz de seu sofrimento um ato de liberdade
No auge da loucura, August Strindberg virou alquimista, procurou a fórmula do ouro e não encontrou.
Já Leilah Assumpção, no auge da lucidez, procurou a fórmula do amor e a encontrou, transmutando sua própria dor na peça "Dias de Felicidade", alquimia corajosa em que transforma tragédia em comédia, um casal separado num par de amantes apaixonados e um rosto de mulher deformado no ponto de partida para um longo e vitorioso processo de libertação.
O entrecho é simples. Ela, banqueira workaholic; ele, advogado careta. Separam-se: ela só vivia para o banco e ele, para seus processos.
A solidão a dois deu em ruptura. Então ela sofre um desastre que a transforma, da mulher belíssima que sempre fora num Corcunda de Notre Dame --segundo suas próprias palavras.
Trágico? Terrível? Pesado demais para as noites de fim de semana na plateia de um teatro? Muito pelo contrário! Face ao horror dos acontecimentos, o ex-marido entediado passa a ser um companheiro assíduo, parceiro de brincadeiras românticas, ternas, adolescentes, circenses ou meramente obscenas.
A ex-mulher workaholic deixa o banco e a frigidez de lado e, apesar do rosto disforme, sensualiza, faz charme, vira fêmea, menina, amiga e partner do ex, agora mais in do que nunca.
A sobrevida se revela como a própria vida em seu estado mais puro, que é a busca da alegria, do afeto, de estar no mundo com todos os sentidos em plena vigência: o gosto de um vinho que nem se sabia mais que existia, a maciez de um edredom esquecido no mundo insensível, a cor de um legume, o cheiro de um perfume.
Uma lembrança boba desanda em briga e um ensaio de pornochanchada, em deboche. Mão boba passa onde não deve. Utensílio doméstico vira falo em cena de commedia dell'arte.
Pela violência dos fatos, deveriam ser personagens de um drama, um melodrama, uma tragédia, mas são dois palhaços num picadeiro, dois amantes cheios de tesão, duas crianças brincando de esconde-esconde.
E é essa paixão tardia que subverte os critérios de beleza e faz com que o rosto deformado da protagonista se dilua em mera metáfora.
Tudo tão vivo, tão nítido, tão pouco e tanto no cenário minimalista de Chris e Nilton Aizner, na direção magistral de Regina Galdino, sob a luz de Ney Bonfante e a trilha sonora de George Freire e João Cristal.
Tudo absolutamente perfeito, irretocável, emocionante, contagiante, nas interpretações de Lavínia Pannunzio e Walter Breda. Se Strindberg transmutou sua loucura em "Inferno", que, a meu ver, é uma das obras literárias mais instigantes de todos os tempos, a alquimista Leilah Assumpção transmutou seu sofrimento em "Dias de Felicidade" --um ato de liberdade. Mais um, em sua longa carreira de insubmissão.