Pílula do esquecimento
Há dez anos sem publicar um romance, o nipo-britânico Kazuo Ishiguro lança "O Gigante Enterrado", história de um casal que busca um filho numa Grã-Bretanha de ogros e dragões
Kazuo Ishiguro combina a entrevista e manda avisar que devo ligar pontualmente no horário acertado, pois não terei chance de remarcar. Fico com vontade de responder: "Eu sei, eu li os livros do senhor". Seria exótico pensar na Etsuko, de "Uma Pálida Visão dos Montes", se atrasando para o que quer que fosse; assim como seria cômico imaginar esse escritor nipo-britânico --uma sobreposição de neuroses em forma de nacionalidade-- esperando junto ao telefone enquanto a jornalista --baiana-- se enrola com os códigos da chamada internacional.
Se você não leu "Os Vestígios do Dia", obra que consagrou Ishiguro, basta pensar em Carson, o mordomo impecável do seriado Downton Abbey, claramente baseado em seu protagonista. Se (ainda) não leu "O Gigante Enterrado", lançado este mês no Brasil, basta pensar em como seria a literatura de fantasia caso fosse abordada por um grande artista com pouquíssima bagagem no gênero.
Em "O Gigante Enterrado", Ishiguro revisita temas típicos de sua obra, como memória, dignidade e o papel dos personagens na história, sob o ponto de vista de um casal em busca de um filho do qual mal se lembra numa era pós-arturiana repleta de ogros, duendes e dragões.
Em uma Grã-Bretanha vagamente histórica, arrasada por conflitos entre bretões e saxões, os protagonistas Axl e Beatrice precisam combater um dragão para acabar com a névoa de esquecimento que se abate sobre a região. Fazer isso, no entanto, é desenterrar o passado, lembrar do que recalcaram a fim de seguir em frente.
Em entrevista à Folha, o autor explica que o livro é sobre "as coisas que escolhemos esquecer na hora de formar uma sociedade, ou de construir um relacionamento longo. Não existe relação humana possível que não tenha gigantes enterrados no quintal", diz ele.
Falando assim pode parecer um livro repleto de ação, mas não é o caso --isso sim seria uma guinada na carreira de Ishiguro, muito mais do que os dragões. A ação é refreada tanto pela distância entre o tempo da narrativa e os acontecimentos narrados quanto pelo tom contido do narrador. Esse, por sinal, é o primeiro romance de Ishiguro escrito em terceira pessoa. "Eu pensei inicialmente em escrever em primeira, na voz de Axl, mas razões práticas me dissuadiram. Seria difícil demais ter um narrador que não lembrasse dos acontecimentos, e eu queria passar essa ideia de um casal que funciona como um personagem unitário", explica Ishiguro.
Existe outro bom motivo que explica a escolha do narrador em terceira pessoa: ele funciona como uma espécie de guia turístico que introduz o leitor a essa Grã-Bretanha de contornos fictícios de cerca de 1.500 anos atrás.
MORDOMO
Faz dez anos que Ishiguro não publica um romance. Nesse hiato --o maior de sua carreira--, escreveu um livro de contos ("Nocturnes", sobre músicos, profissão que chegou a cogitar para si). "O Gigante Enterrado" está longe de ser seu melhor trabalho --se opinião de jornalista ainda interessa a alguém, seria "Os Vestígios do Dia", seguido de muito longe por "Não me Abandone Jamais"--, mas a obra média de Ishiguro paira acima de quase tudo que seus contemporâneos ingleses têm produzido.
Ele gosta mesmo é de colocar personagens conservadores em situações de mudança. Em seu livro mais famoso, um mordomo à moda antiga se ressente pela decadência da aristocracia britânica no entre-guerras e pelo fato de ter um novo patrão que, além de americano e sem pedigree, não dá a mínima para o emaranhado de rituais que orientam sua vida.
Stevens elabora detidamente sobre a ética e a conduta de sua profissão, sobre como o mordomo precisa refletir a dignidade do patrão. No entanto, conforme ele avança em suas divagações sobre a postura do mordomo, fica claro que este deve ser uma versão aperfeiçoada de seu patrão, uma espécie de "doppelgänger" melhorado. Elevado por manter um comportamento ainda mais irretocável, rebaixado por sua posição na hierarquia social.
Um movimento semelhante ocorre com os clones doadores de órgãos de "Não me Abandone Jamais". Criados para se sacrificarem por seus originais, os clones devem se abster de cigarros e bebidas e são lembrados constantemente de que os cuidados com a saúde, importantes para todos, são ainda mais importantes no caso deles, que precisam fornecer bons órgãos. Assim como o mordomo, os clones enxergam uma dignidade em sua atividade e defendem a ordem social que os coloca nessa posição.
Em ambos os livros, os personagens vivem um momento de transição com consequências diretas sobre o modo de vida que eles vinham defendendo, apegam-se a instituições em declínio e se ressentem por seu naufrágio.
Uma ruptura interessante deste novo livro em relação aos trabalhos anteriores é que "O Gigante Enterrado" trabalha a temática da viagem de um jeito muito mais clássico do que outros livros do autor. O tema das viagens, um dos grandes temas da literatura, aparece de cabeça para baixo nas obras anteriores. Se a viagem clássica implica em uma transformação dos personagens, nas viagens de Ishiguro os personagens são reprimidos demais para permitir uma alteração em seu caráter ou forma de pensar.
O GIGANTE ENTERRADO
AUTOR Kazuo Ishiguro
TRADUÇÃO Sonia Moreira
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 39,90 (400 págs.)
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OUTROS ROMANCES DO AUTOR
Destaques da obra de Kazuo Ishiguro
'Um Artista do Mundo Flutuante' 1986
Masuji Ono, pintor famoso caído em desgraça, venera o passado guerreiro de sua nação e é rechaçado pelo caos e pela desintegração do presente, em bares e casas de gueixas
'Uma Pálida Visão dos Montes' 1982
Primeiro romance de Ishiguro, conta a vida de uma sobrevivente da bomba de Nagasaki. No exílio inglês, ela medita sobre a hecatombe após o suicídio de uma das filhas
'Os Vestígios do Dia' 1989
O mordomo Stevens, já próximo da velhice, rememora as três décadas que dedicou à casa de um distinto nobre da Grã-Bretanha, hoje ocupada por um milionário norte-americano
'Não Me Abandone Jamais' 2005
Kathy H. relembra o tempo que passou em um internato inglês. O local esconde um mistério: todos os "alunos" são clones, produzidos para servir de peças de reposição
'Quando Éramos Órfãos' 2000
Um detetive retorna da Inglaterra a Xangai, sua terra natal, onde seus pais desapareceram há vinte anos. A cidade agora é palco da guerra entre China e Japão