Crítica livro/ensaio
Obra decifra a cidade a partir da literatura
Sem otimismo ingênuo, uruguaio Ángel Rama vê papel de intelectuais na formação das Américas
Que rumo diferente poderia ter tido a prática da crítica cultural nas Américas? A nova e bem cuidada edição de "A Cidade das Letras", de Ángel Rama (Boitempo Editorial), quase impõe a pergunta em suas entrelinhas.
Publicado em 1983, ano da prematura morte de seu autor (nascido em Montevidéu, em 1926), o livro é um caso raro de crítica cultural ampla em cujo miolo --como se lê nos trabalhos da rara Beatriz Sarlo-- está a literatura, mas que se articula a partir de um ponto de vista de esquerda.
Esquerda reformista, não aquela que se pretendia revolucionária. Rama está interessado em entender a história e o funcionamento das letras no ambiente indicado no título, a cidade, nas Américas.
O ponto de partida quase não poderia ser mais simples: Rama observa que a cidade, no Novo Mundo americano, nasceu por assim dizer pronta, estruturada, sem contar com o lento processo de amadurecimento e acumulação ocorrido na Europa.
Nessa cidade nova e já estratificada os letrados e as letras terão papel central, que Rama estuda em sucessivos momentos da história.
Um papel de guardiães do poder, mantendo à margem a língua dos "bárbaros", à custa de um barroquismo conveniente aos intelectuais e ao poder que protegiam.
Alinhando à vontade análises e intuições de urbanistas, críticos, sociólogos, historiadores e escritores --incluindo gente que hoje nem se cumprimentaria, dadas as animosidades de seus intérpretes, um Richard Morse e um Darcy Ribeiro aqui, um Michel Foucault e um Jacques Derrida ali--, Rama pensa nas Américas, um âmbito que se perdeu, desde sua geração, quase a mesma de Darcy e Fernando Henrique Cardoso, formados na perspectiva desenvolvimentista.
Como quase todos de sua geração, Rama tem em Brasília um sinal de novidade, um marco de ultrapassagem da América, que teria, na nova capital brasileira -- onde ele quase veio a viver, como professor da então nascente UnB, possibilidade bloqueada com o Golpe de 64--, a representação de sua emancipação, arquitetônica e urbanística, e igualmente mental.
Não se trata de um otimista ingênuo, mas de alguém que, mesmo debruçado sobre temas tidos como menores, só sabia pensar em escala internacional, em geral continental, sem complexos de inferioridade, mas também sem delírios de grandeza.
Ángel Rama não tinha nada dessas divagações anódinas que vieram a ser dominantes no cenário acadêmico das letras no Brasil sob o generoso guarda-chuva da literatura comparada e do multiculturalismo de ocasião.
A CIDADE DAS LETRAS
AUTOR Ángel Rama
TRADUTOR Emir Sader
EDITORA Boitempo Editorial
QUANTO R$ 38 (160 págs.)
AVALIAÇÃO ótimo