Diretor faz da língua francesa sua pátria
Nascido nos EUA e naturalizado no país europeu, Eugène Green recorre a diálogos eruditos no filme 'La Sapienza'
Crítico de sua terra natal, cineasta diz usar o artifício por não ver sentido em filmar o que vivemos no dia a dia
Talvez não haja no mapa-múndi do cinema atual quem leve mais a sério o princípio "minha pátria é minha língua" (tomado emprestado por Caetano Veloso, na letra de "Língua", de Fernando Pessoa) do que o americano naturalizado francês Eugène Green, 68.
"La Sapienza" (2014), seu quinto longa e o primeiro a chegar em circuito comercial ao Brasil, estreia nesta quinta (10). Trata-se da história de um casal francês (ele, arquiteto, ela, psicóloga) em crise profissional e conjugal que viaja à Itália em busca de renovação. Um encontro com um jovem par de irmãos vai operar nesse sentido.
Já nos primeiros planos do filme, fica patente a assinatura do diretor: a língua (ora francesa, ora italiana, jamais inglesa) é tratada com erudição aguda. Não há espaço para coloquialismos nem para inflexões dramáticas típicas do naturalismo (o tom não sobe para marcar perguntas, por exemplo).
A dicção é precisa; o encadeamento das palavras (as famigeradas "liaisons", terror dos aprendizes da língua de Molière) nunca foge à norma culta. "Não vejo utilidade em filmar aquilo que vemos no dia a dia", diz Green, em entrevista por e-mail. "Busco tornar acessível ao espectador uma realidade mais profunda, escondida, que só o cinema pode revelar."
MISTÉRIO EUROPEU
Ele rechaça a ideia de que a formalidade dos diálogos resvale em artificialismo.
"As entonações são absolutamente naturais, mas reduzidas à escala que usamos quando falamos conosco mesmos. A partir do momento em que tentamos convencer um interlocutor de algo, há 'construção' de discurso, e então o trabalho intelectual corta o fluxo de energia interior, proveniente desse 'ser escondido' que me interessa."
Ou seja: volteios vocais ou de interpretação aniquilam o instinto. O que, para um místico como o cineasta, é imperdoável. "Peço aos atores que vivam a realidade do presente, do instante, em todo o seu mistério", explica.
Foi em busca desse mistério, no sentido de uma ligação com o espiritual, que ele se radicou na França em 1969, ao fim de uma temporada de estudos em Munique. Daí em diante, no léxico de Green, os EUA atenderiam por "Barbárie", e a língua natal seria puro "jargão para fazer negócios".
Hoje, nos sets de seus filmes, o incauto que pronuncia uma palavra no "patoá" anglo-americano (mesmo que se trate de um termo técnico, como "travelling") é instado a desembolsar 50 centavos.
"O que me cercava na Barbárie não parecia real, a realidade estava do outro lado do Atlântico. Ao chegar à França, decidi rapidamente me fixar no país por causa da língua, que entendi que seria a 'minha pátria'", conta.
Se o francês é a pátria de Green, o italiano e o português talvez sejam, para retomar a letra de "Língua" citada no alto, suas respectivas "mátria" e "frátria" –ou o contrário.
ENSAIO BIOGRÁFICO
Também escritor e diretor teatral, ele é autor de um romance passado em Portugal, rodou seu longa anterior em Lisboa (no idioma de Camões) e se prepara para lançar um volume dedicado a Pessoa (1888-1935).
Será um misto de ensaio biográfico e de "transposições" (como Green chama as traduções de poemas e de uma peça do lusitano), acrescidos do roteiro de um filme curto sobre uma "anedota engraçada" da vida pessoana.
No sábado (12), às 11h, o CineSesc (r. Augusta, 2.075, tel. 11-3087-0500, grátis) promove sessão comentada de "La Sapienza", com o curador e crítico João Spinelli.