O despertar da besta
'Beasts of No Nation', do diretor da aclamada 'True Detective', é a primeira aposta da Netflix para o Oscar e para um novo modelo de lançamentos simultâneos no cinema e na internet
Enquanto Amazon, Hulu e, mais recentemente, Apple tomam os primeiros passos na geração de conteúdo em audiovisual na internet, o líder do segmento já começa a pensar adiante.
Ao lançar o filme "Beasts of No Nation" (feras de lugar nenhum) simultaneamente on-line e nos cinemas de EUA e Inglaterra, a Netflix, que revolucionar a indústria cinematográfica da mesma maneira que fez com a televisiva.
Será uma tarefa ingrata. Assim que a empresa anunciou, em fevereiro, os planos de não respeitar a janela de 90 dias entre o lançamento do longa nas salas e a transmissão em streaming, as principais redes de cinema avisaram que boicotariam "Beasts".
A Associação Nacional de Exibidores Americanos é bastante clara na sua posição: "Serviços de assinatura de filmes e aluguéis baratos mataram o DVD e, agora, Ted Sarandos [diretor de aquisição da Netflix] também quer matar os cinemas".
Matt Mueller, editor da "Screen International", uma das principais publicações sobre o mercado de entretenimento, acredita que a entrada da Netflix nos cinemas e na produção de filmes de ficção originais é "reflexo de como o poder mudou para as mãos do consumidor".
"Essas empresas estão transformando o paradigma da distribuição de conteúdo, e outras provedoras precisarão se adaptar à realidade", diz o britânico. "O mundo do cinema é diferente do da TV, mas a Netflix tem bolsos fundos para peitar os estúdios."
ATRÁS DO OSCAR
Mas a Netflix não parece preocupada. Tampouco encara a posição dos cinema como boicote. "Nem todos os nossos filmes serão feitos pensando em grandes lançamentos. Teremos estilos diferentes exatamente para atender públicos variados", declara a empresa por meio da sua assessoria.
"Adoraria ver meu filme nos cinemas de todo o planeta, mas, acima de tudo, quero que as pessoas o assistam", diz à Folha Cary Fukunaga, diretor e roteirista de "Beasts".
"O fato de a Netflix ter 65 milhões de assinantes mostra que mais gente verá 'Beasts' [na plataforma] que nos cinemas tradicionais. Dependendo da vida útil da obra, quem sabe as pessoas não a assistam novamente nos cinemas no futuro?"
É uma possibilidade concreta. Quando Sarandos desembolsou US$ 12 milhões nos direitos de "Beasts", cujo custo de produção foi metade desse valor, tinha um objetivo claro: o Oscar. Para ser elegível ao prêmio, o longa precisaria estrear nos cinemas americanos antes de outra plataforma –algo que a Netflix testou com os documentários "The Square" e "Virunga", ambos indicados– ou simultaneamente.
A empresa entrou em acordo com a rede americana Landmark, que colocará o longa em cerca de 20 salas. A Inglaterra será o único país além dos EUA a exibir o filme nos cinemas, também visando premiações britânicas.
Baseada no livro "Feras de Lugar Nenhum" (ed. Nova Fronteira, esgotado), do nigeriano Uzodinma Iweala, a produção é uma das histórias mais brutais feitas em 2015.
Entrou na competição oficial do Festival de Veneza e rendeu o prêmio de ator revelação para o garoto Abraham Attah. Ele faz um menino que entra para uma guerrilha após ver sua família massacrada na guerra civil de um país ficcional na África ocidental.
"É um tema que ficou na minha mente no fim dos anos 1990, quando vi imagens de crianças vestidas como militares. Somente quando li o livro senti qual história deveria contar", recorda-se o diretor.
"Sabia que a logística em Gana seria complicada, porque não há uma indústria. Mas foi essencial filmar lá da maneira correta. Não queria um processo colonizador no qual você faz o trabalho e vai embora. Precisaria mesclar equipes locais e estrangeiras."
O projeto é tão importante para o cineasta que ele não quis aproveitar o sucesso da primeira temporada de "True Detective", dirigida por ele, para continuar na série. "Meus filmes são todos diferentes entre si. Nunca faria a mesma coisa. Voltar para 'True Detective' seria passar mais tempo num lugar onde já estive."