Gregorio Duvivier
Só neste país é que se diz neste país
Os portugueses não têm nenhuma relação afetiva com as vogais. Confortável se pronuncia cnfrtávl.
Sou apaixonado por Portugal. Mas (ou talvez por isso mesmo) acho um país difícil de entender. O bacalhau, por exemplo: como pode o prato típico de Portugal ser um peixe que só se encontra no mar da Noruega, Islândia ou do Canadá? Como pode ser preciso navegar milhares de quilômetros pra se pescar a matéria-prima das suas datas festivas? Que tipo de peixe é esse que já nasce salgado e sem cabeça?
Visitar Portugal é ""no mínimo"" vertiginoso ""como se olhar num espelho que deforma"" muitas vezes pra melhor. Percebemos que nosso vinho é pior, nosso queijo é pior, mas que nosso apego às vogais, por exemplo, é muito maior. Na palavra confortável: temos carinho pelo primeiro "o", pelo segundo "o", pelo "á", e até pelo "e". Os portugueses não têm nenhuma relação afetiva com as vogais. A palavra confortável, em Portugal, pronuncia-se cnfrtávl. Nada menos confortável. Parece que querem logo chegar ao final da frase. Quase todas as vogais caem no esquecimento, de modo que o resultado final frequentemente parece que se está lendo uma palavra digitada por alguém que na verdade só esbarrou no teclado. Kdsrfsts.
Perceba que, se alguém disser "chlént!", não estará falando o dialeto iídiche, mas "excelente". Acharam que a palavra já tinha "e" demais. Por que pronunciar o "e" quatro vezes? Basta uma! É a chamada austeridade vocálica.
Difícil dizer que somos iguais, falando dialetos tão diferentes. No entanto, algumas semelhanças são inegáveis.
Herdamos no sangue lusitanos (além do lirismo, é claro) a vocação para o fatalismo. Conforta-nos pensar que vivemos num país amaldiçoado ""e gostamos de repetir isso, como se isto melhorasse algo à nossa condição. Como diz o (português, claro) Sergio Godinho: "Só neste país é que se diz 'só neste país'". Engana-se o Godinho. O que mais se diz no Brasil é "só mesmo no Brasil".
Não há um português que não se refastele em enumerar as mazelas do país. E nisso brasileiros somos idênticos: na certeza de que estamos fritos. "É por isso que o Brasil não vai pra frente." Se tem algo que sabemos fazer, além de não ir pra frente, é enumerar os motivos pelos quais não estamos indo pra frente.
Numa eleição popular que visava escolher o maior português de todos os tempos, em que concorriam Camões e Infante D. Henrique, quem ganhou foi o Salazar, ditador por 40 anos. Até nisso nos parecemos: na saudade de tempos piores.
Talvez seja por isso a gente não vai pra frente. Será mesmo que a gente quer?