Ponto Crítico
Música de primeira
CD | "16 VALSAS PARA FAGOTE SOLO"
Está na hora de abandonar os preconceitos e aceitar a realidade, por mais que ela pareça contrariar o bom senso: um CD de fagote solo está entre os melhores lançamentos de artistas brasileiros de música erudita nos últimos anos.
Antes que algum engraçadinho diga que essa é a mais gritante prova da tão propalada crise da indústria fonográfica, vale salientar que o disco não sai na entressafra. Pelo contrário: vários músicos de talento têm aproveitado o barateamento das tecnologias de gravação para lançar álbuns independentes de alta qualidade.
O fato é que, ao registrar as 16 valsas para fagote solo de Francisco Mignone (1897-1986) para o Selo Sesc (R$ 20), Fábio Cury não apenas prestou um tremendo serviço à divulgação de seu instrumento ou da música erudita brasileira como fez um enorme favor a quem simplesmente aprecia música em geral, sem ligar para rótulos e fronteiras estéticas e geográficas.
Ex-integrante da Osesp e atual chefe do naipe de fagotes da Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo, Cury pode ser considerado, sem exageros, um dos maiores fagotistas que o Brasil já produziu. Instrumentista amadurecido, cujo assombroso virtuosismo técnico está a serviço de uma musicalidade transbordante, ele produziu um daqueles álbuns que parecem adquirir vida e vontade próprias e simplesmente se recusam a sair do aparelho de som depois de colocados para tocar, oferecendo-se a escutas múltiplas e prazerosas.
A exemplo de todos os compositores brasileiros que não se chamam Villa-Lobos, Mignone é um autor negligenciado mesmo por aqui. Filho de um flautista italiano, nasceu em São Paulo, mas passou a maior parte da vida no Rio de Janeiro, atuando como regente e pianista, e deixando uma produção prolífica em quase todos os gêneros, do piano solo à ópera, passando pelo violão, diversas formações camerísticas e partituras orquestrais regidas por mitos como Richard Strauss (1864-1949) e Arturo Toscanini (1867-1957).
Chorão de sucesso na juventude, sob o pseudônimo de Chico Bororó (com obras gravadas até pelo Rei da Voz, Francisco Alves), Mignone teve como guru Mário de Andrade e --à exceção de uma breve fase na qual, sob influência da conversão de Stravinsky ao credo de Schönberg, flertou com o dodecafonismo-- sua produção é essencialmente marcada pela vontade de escrever em idioma "nacional".
Espécie de "patinho feio" dos instrumentos de madeira, o fagote, à primeira vista, está longe de parecer o veículo mais óbvio para arroubos de brasilidade musical --em que pesem os contracantos em que Airton Barbosa envolve a voz de Cartola na antológica gravação, de 1976, de "Preciso me Encontrar", de Candeia.
Se a literatura universal para fagote já é reduzida, o repertório nacional anterior a Mignone não vai muito além da "Ciranda das Sete Notas" (1933), de Villa-Lobos. O despertar do autor das 16 valsas para o instrumento está ligado à chegada ao Rio de Janeiro, em 1952, do fagotista francês Noël Devos.
Convidado por Eleazar de Carvalho para integrar a OSB, onde ficou por mais de três décadas, Devos impressionou Mignone não apenas por sua desenvoltura ao fagote como também por formar toda uma escola de fagotistas brasileiros (como o Barbosa que tocou com Cartola, por sinal).
Fascinado por Devos, o compositor acabou produzindo uma série de obras para fagote, de solos a quartetos, com destaque para as valsas gravadas por Cury. Mignone já tinha passado dos 80 anos ao escrevê-las, em 1979. Encontrava-se, portanto, no auge da maturidade, mas não parecia ter perdido em nada o frescor da juventude.
Com títulos bem-humorados como "Apanhei-te Meu Fagotinho", "Macunaíma, Valsa Sem Caráter" e "A Escrava que não Era Isaura", as obras unem melodismo agradável e sofisticação formal. Sua dificuldade técnica pode chegar a níveis bem elevados --a execução de Cury, porém, é tão fluente, e ele parece tão mais interessado em mostrar as obras do que a si mesmo, que esse aspecto pode até passar despercebido para o ouvinte incauto. O virtuosismo desaparece, e fica só a música.