Quinta-feira, 20 de julho
MARIE VASSILTCHIKOV
tradução FLÁVIO AGUIAR
Hoje à tarde eu e Loremarie Schönburg estávamos conversando, sentadas na escadaria do escritório, quando Gottfried Bismarck irrompeu, com as maçãs do rosto completamente afogueadas. Eu nunca o vira em tal estado de febril excitação. Primeiro ele puxou Loremarie à parte, e então me perguntou quais eram os meus planos. Disse-lhe que eles estavam em aberto, mas que eu gostaria de fato de sair do AA [sigla para Auswärtiges Amt, Ministério das Relações Exteriores] logo que possível. Ele me disse que eu não deveria me preocupar, que tudo se arranjaria dentro de poucos dias e que todos nós ficaríamos sabendo o que aconteceria conosco. Logo depois de nos pedir que fôssemos para Potsdam assim que possível, ele voltou para o seu carro e se foi.
Retornei ao escritório e liguei para Percy Frey, na Legação Suíça, para desmarcar o jantar que eu combinara com ele, já que eu preferia ir para Potsdam. Enquanto esperava [que a telefonista completasse a ligação], voltei-me para Loremarie, que estava ao pé da janela, e perguntei-lhe por que Gottfried estava tão alterado. Seria a Konspiration? (Tudo isso com o fone na minha mão!) Ela sussurrou: "Sim! É isso! Está feito! Hoje de manhã!". Nesse momento Percy atendeu. Ainda com o fone na mão, eu perguntei: "Morto?". Ela me respondeu: "Sim, morto!". Eu pus o fone no gancho, segurei-a pelos ombros e começamos a valsar pela sala. Lançamos mão de alguns papéis, enfiei-os numa gaveta, e gritando para o porteiro que estávamos "dienstlich unterwegs" ["saindo a serviço"], saímos correndo para a estação do Zoo. No caminho para Potsdam ela me contou, sussurrando, todos os detalhes e, embora o vagão estivesse lotado, nem tentamos ocultar a nossa excitação e alegria.
O conde Claus Schenk von Stauffenberg, um coronel do Estado-Maior, colocara uma bomba aos pés de Hitler durante uma conferência no QG de Rastenburg, na Prússia Oriental [hoje território polonês]. Ela explodira, e Hitler estava morto. Stauffenberg esperara do lado de fora pela explosão e, vendo Hitler carregado numa maca e coberto de sangue, correra para o seu carro, que ficara escondido em algum lugar, e com seu ajudante de campo, Werner von Haeften, fora para o campo de aviação local e voara de volta para Berlim. Na comoção geral, ninguém notara a sua fuga.
Chegando a Berlim, ele foi diretamente para o OKH [quartel-general do Exército], na Bendler- strasse, que fora tomado pelos conspiradores e para onde seguiram Gottfried Bismarck, Helldorf e muitos outros. (O QG fica do outro lado do canal, em frente à nossa Woyrschstrasse.) Nesta tarde, às seis horas, seria feito o anúncio pelo rádio de que Adolf estava morto e um novo governo fora formado. O novo chanceler do Reich seria [Carl Friedrich] Gördeler, o antigo prefeito de Leipzig. Com um background socialista, ele é considerado um economista brilhante. O nosso conde Schulenburg ou o embaixador Von Hassell ocuparia o Ministério de Relações Exteriores. Minha primeira impressão foi a de que seria talvez um erro colocar as melhores cabeças num governo que poderia ser apenas provisório.
Stauffenberg, de 36 anos, era relativamente recém-chegado na Resistência antinazista, tendo sido recrutado apenas em 1943. Em sua juventude, como muitos patriotas alemães, ele acreditou que Hitler era o homem certo para salvar a Alemanha das consequências desastrosas e da desonra do Tratado de Versalhes. Enquanto lutava sob as ordens de Rommel na África, ele fora gravemente ferido, perdendo uma das vistas, o braço direito e dois dedos da mão esquerda --uma deficiência que se tornaria fatal quando a hora da verdade chegasse. Em junho de 1944 ele fora designado chefe do Estado-Maior do Exército de Reserva, o assim chamado Ersatzheer, cujo vice-comandante, o coronel-general Friedrich Olbricht, era um veterano conspirador antinazista. Nessa posição, Stauffenberg tinha de fazer relatórios periódicos para o Führer em pessoa. Como nenhum outro membro da Resistência que pertencia ao círculo mais próximo de Hitler seria capaz ou concordava em assassiná-lo, Stauffenberg tomou para si a tarefa, aguardando a melhor ocasião.
Duas tentativas --em 11 e 15 de julho-- foram canceladas na última hora. A essa altura já se multiplicavam as prisões, mesmo entre os militares. Era claro que a Gestapo estava apertando o cerco. Quando Stauffenberg foi chamado a se apresentar de novo perante Hitler em 20 de julho, ele decidiu que desta vez, acontecesse o que acontecesse, ele o faria. *
Chegamos ao Regierung em Potsdam pouco depois das seis horas. Fui me lavar, Loremarie correu para cima. Uns poucos minutos depois, eu ouvi passos se arrastando pela escada, e ela entrou: "Houve um anúncio no rádio: 'um conde Stauffenberg tentou matar o Führer, mas a Providência o salvou...'".
Na verdade o primeiro anúncio no rádio, às 18h25, não citava nomes. Dizia apenas: "Hoje houve um atentado contra a vida do Führer com explosivos... O próprio Führer não sofreu ferimentos, a não ser algumas queimaduras e hematomas leves. Ele retomou suas funções imediatamente e, como programado, recebeu o Duce para uma longa conversa". Apenas no comentário subsequente havia uma menção velada sobre a autoria ("ação do inimigo"). Naquele momento Hitler ainda não se dera conta de que a bomba era parte de um plano muito maior para derrubar o regime. Somente depois que ele tomou conhecimento das tentativas de tomar o poder, em Berlim, Viena e Paris, é que teve ideia da dimensão do que estava acontecendo.
Eu tomei seu braço e corremos de novo para cima. Encontramos os Bismarck na sala de visitas. Melanie tinha o rosto em estado de choque, Gottfried caminhava de um lado para o outro sem cessar. Eu tinha medo de olhar para ele. Ele acabara de voltar da Bendlerstrasse e repetia sem parar: "Não é possível! É uma brincadeira! Stauffenberg o viu morto". "Eles" tinham montado uma farsa e arranjado um dublê de Hitler para continuá-la. Ele entrou no seu escritório para telefonar para Helldorf. Loremarie foi atrás e eu fiquei sozinha com Melanie.
Ela começou a se lamentar: Loremarie tinha arrastado Gottfried para isso; ela o doutrinara anos a fio; se ele morresse agora, ela, Melanie, é que ficaria sozinha com três crianças pequenas; talvez Loremarie pudesse se dar àquele luxo, mas que crianças ficariam órfãs de pai? Outras, não as dela... Era horrível, e não havia nada que eu pudesse dizer.
Gottfried voltou para a sala onde estávamos. Ele não conseguira falar com Helldorf, mas tinha mais notícias: a principal estação de rádio fora perdida; os insurgentes a tomaram, mas não conseguiram fazê-la funcionar, e agora ela estava de volta às mãos da SS. Contudo, as escolas preparatórias de oficiais nos subúrbios tinham pegado em armas e agora marchavam sobre Berlim. E, de fato, uma hora depois ouvimos os blindados da escola de treinamento de Krampnitz atravessando Potsdam a caminho da capital. Nós ficamos com os olhos grudados nas janelas, vendo-os passar, e rezando. Ninguém nas ruas, que estavam praticamente vazias, parecia saber o que estava se passando. Gottfried insistia em dizer que ele não podia acreditar que Hitler não fora atingido, "eles" deviam estar escondendo algo...
Um pouco depois o rádio anunciou que o Führer faria um pronunciamento para o povo alemão à meia-noite. Nós nos demos conta de que apenas nesse momento poderíamos saber ao certo se tudo aquilo era uma farsa ou não. Ainda assim, Gottfried se recusava a perder a esperança. Segundo ele, mesmo que Hitler estivesse vivo, seu QG na Prússia Oriental ficava tão longe que, se as coisas corressem bem alhures, o regime poderia ser derrubado antes que ele pudesse recuperar o controle na Alemanha. Mas nós, os demais, estávamos nos sentindo muito mal.
Desde 1943 havia no QG do Exército em Berlim, na Bendlerstrasse (o assim chamado OKH), um plano de emergência chamado Valquíria, que previa medidas a serem tomadas em caso de desordens internas ou sabotagem em larga escala praticada pelos milhões --nessa altura-- de trabalhadores estrangeiros na Alemanha. O plano previa um papel-chave a ser exercido pelo Ersatzheer [Exército de Reserva] e pelas unidades aquarteladas ao redor da capital --o Batalhão da Guarda em Berlim e pelas escolas de preparação de oficiais na periferia. Ironicamente, o próprio Hitler aprovara essa Operação Valquíria. Olbricht, Stauffenberg e seus camaradas de conspiração tinham acrescentado secretamente um adendo que previa a execução do plano para derrubar o próprio regime nazista, depois do que um novo regime faria a paz. Desde o começo o plano era falho em vários pontos. Para começar, dentre os principais oficiais superiores que, segundo a Operação Valquíria, estariam tomando o poder através da Europa, apenas uns poucos conheciam as verdadeiras intenções dos conspiradores. Dos outros, a começar pelo General Friedrich Fromm **, GOC Ersatzheer, de quem quase tudo dependia, esperava-se que "eles entrassem no jogo", depois que a morte do Führer os liberasse do juramento de fidelidade a ele; em outras palavras, tudo dependia da morte de Hitler. Também era essencial que fossem interrompidas todas as comunicações de Rastenburg com o resto do mundo --para impedir que ordens de reação chegassem a seus objetivos. Por último, mas não menos importante, o presumível assassino, o próprio Stauffenberg, tinha não só de matar Hitler mas também de voltar são e salvo a Berlim para assegurar o sucesso da Operação Valquíria. Para engrossar o caldo, o soldado alemão médio estava agora doutrinado tão pesadamente sobre disciplina que era impossível avaliar que reações ele teria diante de uma ordem de tomar o controle de algumas das instituições-chave do país.