Imaginação
PROSA, POESIA, TRADUÇÃO
Dois Poemas
Orelhas
Estão certas todas as canções banais letras convencionais
seus corações como são de praxe; estão certos os poemas
enfáticos inchados de artifícios à luz óbvia da lua
ou de estúpidos crepúsculos; os sonetos mal alinhavados
toscos estão certos bem como as confissões íntimas
não lapidadas reles nem polidas; ouçamos o que dizem
sobre qualquer coisa; dizem não vai dar certo; repetem;
e se o verso é trivial é o mais sagaz quanto mais pueril
mais seguro quanto mais frouxo mais sólido quanto
mais rasteiro mais a toda prova e quanto mais barato
e quanto mais prolixo o alexandrino mais legítimo;
as formas desdentadas vêm do fundo; as odes indigestas
dizem tudo; o verso oco não traz menos que a verdade
nua e ponto. Estão certos os romances de aeroporto;
a quem busca um modelo procure o estúpido; se deseja
uma estrela de primeira grandeza escolha o simplório
é o que digo não busque senão na aberração a sinceridade
e no disparate a franqueza; prêmios literários não passam
de hipocrisia; estiveram desde sempre certos os erros
de tipografia; o contrassenso deve ser o mandamento
de quem precisa disfarçar o mal-estar após mostrá-lo
sem pudor; sim a saudade arde exatamente como
nos roteiros dos filmes mas só as fitas mais chinfrins
e com fins infelizes não mistificam e dizem de antemão
o que seremos: redundância errância perfeição.
Foi-se a vontade de ir ao Egito
Todos foram unânimes: precisava parar de fumar. Foi o que fez.
Com isso parou também de amar o próximo
como a si mesmo e passou a duvidar
de que um dia tenha amado a si mesmo.
Nunca se viu outra vez com sua mãe
e seu pai na fotografia em que parecia amar
e ser amado muito antes de haver fumado
mas quem sabe pressentisse com a pureza
do sorriso o fumante que seria.
Em parar de fumar seu cabelo perdeu
a graça e suas piadas perderam o brilho.
Perdeu amigos sem sentir pena. Perdeu
esboços de poemas e o pudor de dizer não.
Disse adeus ao prazer físico e místico de olhar
as nuvens pela janela do avião como anéis
de fumaça. Arruinou-se sobretudo certo dom
de estar feliz que não excedia a simplicidade
necessária para que o bem gratuito
não se quebrasse - mas agora as horas
parecem porcelanas raras estilhaçando
num daqueles espetáculos em que o malabarista
equilibra pratos no alto de uma vara
que ele pousa na ponta do queixo ao som de uma música chim, algo assim.
Foi-se a vontade de ir ao Egito.
Perdeu o gosto das aves e da companhia dos cães.
Mas, sobretudo, passou a sonhar insistentemente
com rãs que invadem seus pulmões sua casa.