Ponto Crítico
EXPOSIÇÃO | "MULHERES ARTISTAS: AS PIONEIRAS (1880-1930)"
Mulheres na Pinacoteca
AO SE OBSERVAREM OS ESTUDOS DE NUS ALI EXPOSTOS, FICA CLARO QUE O FATO DE OS TRABALHOS TEREM SIDO FEITOS POR MULHERES NÃO IMPLICA UMA "ARTE FEMININA"
"Mulheres Artistas: As Pioneiras (1880-1930)", em cartaz na Pinacoteca do Estado de São Paulo até 6/9, traz à baila um debate quente sobre como abordar a exclusão das mulheres do universo profissional da arte, situação histórica bastante conhecida e que começou a ser tratada pela academia apenas em meados dos anos 1960, no calor de outras reivindicações feministas.
A história da arte feminista é um assunto espinhoso e controverso que, não raras vezes, privilegia dados estatísticos em detrimento de um olhar crítico sobre a qualidade artística e a relevância cultural das obras. Mas, se no mundo ocidental rico a questão é assunto consolidado por nomes de peso como Linda Nochlin, autora do clássico "Why Have There Been no Great Women Artists?" (por que não houve grandes artistas mulheres?), de 1971, e por periódicos como "Woman's Art Journal", no Brasil o tema não conquistou tradição acadêmica, sendo ainda hoje tratado por vozes isoladas, como a da historiadora da arte Ana Paula Cavalcanti Simioni que, junto com Elaine Dias, assina a curadoria da mostra.
Ao contrário do que escreveu Fabio Cypriano em sua crítica publicada na Folha em 15 de julho, a meu ver, o principal mérito de "Mulheres Artistas" é jogar luz sobre as relações ambíguas entre arte moderna e academia no início do século 20, assunto, aliás, que transcende a questão de gênero. As curadoras fazem isso mostrando estudos acadêmicos das duas damas sagradas do modernismo brasileiro, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, junto de trabalhos de artistas desconhecidas, ou pouco conhecidas, como Julieta de França, Angelina Agostini, Abigail de Andrade e Georgina de Albuquerque.
Os paralelos mais interessantes estão na sala "Formação: a Centralidade do Nu", a mais forte da exposição, que reúne estudos de nus feitos a partir de modelos vivos e de estatuária, além de cópias de obras de artistas consagrados.
A exposição deixa claro como as distorções anatômicas, no caso de Anita, e a simplificação formal, no caso de Tarsila, dialogam com a tradição, fato que, de resto, ocorre com toda a arte moderna. As duas frequentaram academias e optaram por ter aulas particulares com professores acadêmicos. Na obra de ambas, a relação com a academia é imprecisa, cheia de idas e vindas.
A mostra derruba mitos e acerta em cheio ao evidenciar que a história da arte moderna é mais complexa do que sua versão simplificadora centrada no triunfo reluzente da vanguarda sobre a tradição.
Além disso, ao se observarem os estudos de nus ali expostos, fica claro que o fato de os trabalhos terem sido feitos por mulheres não implica uma "arte feminina". O que vemos são desenhos pautados em métodos de ensino acadêmico, que em nada diferem dos estudos feitos nas mesmas escolas por alunos homens.
Vale chamar a atenção também para a austeridade da museografia, que não tenta camuflar falta de conteúdo com pirotecnias desnecessárias e retóricas.
Na sala "Criação: Obras Autorais", trabalhos ruins como "Paisagem" (entre 1920-65), de Yvone D'Angelo Visconde Cavalleiro, fragilizam o argumento da curadoria sobre a necessidade de fazer justiça a artistas que foram consideradas amadoras pelo simples fato de serem mulheres. Por outro lado, nessa mesma sala, os óleos de Berthe Worms, Nicota Bayeux e Maria Pardos de fato não ficam para trás dos trabalhos de autores contemporâneos a elas em exibição na mostra permanente do acervo, como Oscar Pereira da Silva, Antônio Parreiras, Estevão Silva, Arthur Timóteo da Costa e Agostinho da Motta, por exemplo.
"Mulheres Artistas" incomoda ao colocar em pauta a discussão sobre como os museus de arte devem abordar problemas sociológicos. Traz à tona o velho dilema curatorial sobre importância histórica versus qualidade artística. O ideal seria que não existissem exposições de "mulheres artistas" e que obras produzidas por mulheres de quaisquer gerações estivessem cada vez mais presentes em mostras de escopo mais amplo, sem a necessidade de se recorrer a cotas.
A mostra ainda se apoia na necessidade de denunciar a exclusão pelo gênero, e o faz a partir de conhecimento histórico sólido, embora nem sempre com obras fortes. No contexto do incipiente debate brasileiro sobre a inserção da mulher no sistema artístico, convenhamos, é um ganho.