Diário de Paris
O MAPA DA CULTURA
Imagens de Eva e outras
Os Reinos do Irreal e as realidades do Congo
A "rentrée littéraire", quando as editoras francesas lançam seus trunfos na disputa pelos prêmios do outono, verá neste ano nada menos do que 589 romances chegarem às livrarias entre este mês e outubro.
A "vindima" das letras inclui cachos de Atiq Rahimi (vencedor do Goncourt por "Syngué Sabour: Pedra de Paciência"), Laurent Binet (do best-seller "HHhH") e Romain Puértolas (de "A Extraordinária Viagem do Faquir que Ficou Preso em um Armário Ikea").
Por ora, nenhum goza de burburinho comparável ao que cerca "Eva", de Simon Liberati, tanto pelos alardeados predicados literários quanto pelos volteios folhetinescos de seus bastidores.
O livro romanceia a relação do autor com a cineasta Eva Ionesco e a biografia "sui generis" desta.
Eva é filha da fotógrafa Irina Ionesco, que se notabilizou nos anos 1970 no gênero da "erotica" (erotismo chique). Uma de suas modelos-fetiche era justamente a cria, clicada em poses libidinosas entre os 4 e os 12 anos.
Há cerca de dois meses, Eva conquistou uma vitória judicial definitiva: a fotógrafa está proibida de expor e de vender imagens da filha. Como troco, Irina pediu a destruição dos 15 mil exemplares já impressos de "Eva", que lhe dedica 69 linhas num total de 278 páginas.
Apoiada no argumento de que os trechos que poderiam constranger Irina (e que abordam derivas sexuais, consumo de haxixe e patrimônio) reproduzem informações já contidas na autobiografia dela, de 2004, uma sentença favorável à circulação da obra foi anunciada no último dia 7. Nelson Rodrigues não faria melhor.
BISPO IANQUE
Ao limpar a quitinete de Chicago em que um homem viveu por 40 anos, o proprietário se depara com o relicário de uma vida em segredo: pilhas de objetos sacados do lixo, centenas de colagens, guaches e aquarelas e um manuscrito de 15 mil páginas e título igualmente monumental –"A História das Garotas Vivian naquilo que se Conhece como os Reinos do Irreal, da Tempestade de Guerra Glandeco-Angeliniana Causada pela Rebelião das Crianças Escravas".
Uma amostra desse universo, concebido por Henry Darger (1892-1973) –de quem só se sabia que trabalhara por anos em hospitais–, está até 11/10 no Museu de Arte Moderna de Paris. O mote para as paisagens, retratos e cenas de batalha expostos é o conflito entre glandelinianos (vilões cruéis) e tropas aliadas de Angelinia (bons cristãos) por causa do levante mirim do título.
A partir daí, Darger imagina feições de dezenas de generais, cria as bandeiras das nações em contenda e projeta mapas táticos dos Exércitos. O conjunto se afigura como um pré-"Game of Thrones".
Há ainda grandes painéis mostrando as artimanhas das heroínas (as garotas Vivian) para escapar de seus captores –com direito à ajuda de dragões.
O parentesco com o seriado não é o único que se depreende da obra de Darger. Internado na infância num hospital psiquiátrico, mais tarde místico candente e coletor de materiais ordinários, ele faz pensar num primo americano de Arthur Bispo do Rosário.
CONGO
Segundo país da África em extensão, quarto em população, a República Democrática do Congo já foi colônia belga, viveu guerra civil devastadora e amargou mais de três décadas de ditadura.
Uma exposição na Fundação Cartier (até 15/11) recolhe ecos dessa história grave na arte local. Mas não dispensa um tom pop que rima com a estética dos quadrinhos e com o suingue das noitadas de Kinshasa, a capital.
O percurso começa por aquarelas de pintores naïf "descobertos" em 1926 por um belga. Nos anos 1940 e 1950, persiste a tutela europeia, na figura de mestres que animam ateliês voltados a aprendizes.
CONGO 2
A geração seguinte afasta-se do apadrinhamento e mergulha na urbe. Moke, Chéri Samba e outros colocam uma paleta de cores vibrantes a serviço dos tipos cool da "swinging Kinshasa" (músicos, dândis, coquetes), sem se esquecerem da crítica social, não raro em chave derrisória –lá estão a falta de saneamento, a guerra contra a malária, as crianças-soldado, a via-crúcis do asilo político no exterior.
O futuro chega por cortesia de Chéri Chérin, que imagina astronautas congoleses a fincar uma estátua tribal num satélite.
Por fim, entre os jovens de hoje, destaque para as fotos em que Kiripi Katembo enquadra Kinshasa em poças d'água imundas, em composições que extraem beleza do colapso urbano. O artista morreu no dia 5 de malária cerebral.