Ponto Crítico
Eletrônica e poética
A alemã Antye Greie-Ripatti reúne música eletrônica e poesia feminina de diferentes países em série experimental
A palavra é sempre o ponto de partida das investigações sonoras da artista alemã Antye Greie- Ripatti. Desde o começo dos anos 2000, quando deixou de lado o seu projeto eletrônico mais pop, Laub, e passou assinar seus discos como AGF/Poemproducer, Greie partiu de experimentos com as diferentes linguagens da música eletrônica para criar uma obra intimamente ligada à poesia.
Em certa medida, seus álbuns, instalações sonoras e colaborações partem de ideias desenvolvidas pela vanguarda da música eletrônica erudita e da poesia mais experimental, como a dos surrealistas e as colagens de William Burroughs. É possível traçar paralelos entre seus trabalhos e peças como "Gesang Der Jünglinge", de Karlheinz Stockhausen, em que trechos cortados de um coro de meninos são editados freneticamente em diferentes camadas tonais eletrônicas abrindo espaço para novas interpretações semânticas. Porém Greie não está presa ao passado. Trabalha sempre mapeando a música eletrônica contemporânea, novas técnicas e tecnologias.
Em um universo no qual o masculino é tão predominante, ela foi cada vez mais encontrando maneiras de trazer o feminino para as suas obras. Primeiro ao participar do quarteto multicultural The Lappetites, ao lado de Kaffe Matthews, Ryoko Akama e da pioneira da eletrônica Éliane Radigue. E, nos últimos anos, com sua "série de poesia", que investiga a história da poesia de uma determinada língua de uma perspectiva feminina.
A série foi iniciada em 2010 com o álbum "Gedichterbe" (herança poética, numa tradução livre), no qual reuniu poemas em alemão, num arco que vai da primeira poeta alemã conhecida, Frau Ava, no século 11, até a contemporânea Ann Cotten, passando pelo romantismo do século 18 e por obras de poetas das duas Alemanhas no pós-Guerra. Para o arsenal sonoro, convidou algumas das principais produtoras do país, como Gudrun Gut, Ellen Allien e Barbara Morgenstern.
O segundo disco da série foi produzido após uma mudança com o marido, Vladislav Delay, para a Finlândia. O resultado é "Kuuntele" ("ouvir", em finlandês), com poemas da tradição do país nórdico, do século 15 até hoje. Desta vez, há um equilíbrio maior de gênero e são citadas oito poetas mulheres e seis homens.
O álbum é mais intimista, tem uma alternância bastante interessante entre o acústico e o eletrônico e uma ênfase em poemas que tratem do ouvir. O interessante é como ela consegue criar uma trama bastante dinâmica usando a própria história das diferentes culturas que dominaram politicamente o país, alternando inglês, finlandês, sueco e alemão em seus experimentos sonoros. Mas não se trata apenas da construção cultural a partir da história dos vencedores. Ao pesquisar comunidades como o povo indígena sami, cria uma fissura entre raízes folclóricas e a dissonância de seus malabarismos com batidas e ruídos.
Agora a série chega à terceira edição com o recém-lançado "A Deep Mysterious Tone", outro álbum colaborativo, construído a partir de textos de poetas japonesas. Já em sua abertura, com a faixa "State of Ainu: Dance", Greie volta a criar um espaço único ao mesclar gravações feitas com comunidades indígenas da ilha de Hokkaido com música de clube.
Essa tensão entre arcaico e moderno está presente em várias faixas, desintegrando textos que vão do período Heian (794-1185) até hoje, com muito do material original criado a partir da Restauração Meiji, período em que o Japão se abre ao mundo, a partir de 1868. A única poeta viva na seleção do álbum é Misumi Mizuki, que lê ela mesma seu poema.
Mulheres são responsáveis pelas fontes sonoras também. As colaborações com artistas como Tujiko Noriko, Kyoka, Ryoko Akama e Yu Kawabata e o choque entre as palavras declamadas em inglês e japonês ampliam as camadas de significado do disco. Ao intercalar momentos de intimismo rascante com bombardeamentos sonoros tão intensos, Greie nos leva por uma trajetória em que o tempo é suspenso em uma grande viagem sensorial.