Imaginação
Estou com nove
Um trecho de "O Garoto"
"Acorda, homenzinho." A voz de Rita entra debaixo das cobertas atrás de mim. Está quente debaixo das cobertas, tem o cheiro bom da Rita e é limpo como lençóis. Eu me enrolo mais, aperto mais meus olhos fechados, e volto a dormir. No sonho, é aniversário da mamãe e ela está me levantando nos braços e me beijando e dançando comigo. Nossa casa cheira a lasanha, vinho e gente, principalmente garotas suando e perfumadas. Uma garota está fumando maconha. Todo mundo está rindo. Mamãe me põe no chão e vai abrir seus presentes. Ela está sentada na poltrona azul debaixo da lâmpada. Todas as pessoas têm presentes nas mãos e estão dando para ela. Uma senhora, que parece legal mas que quando sorri todos os seus dentes são pretos, está segurando um presente bonito amarrado com uma fita dourada. Não! Não! NÃÃÃO! Eu quero dizer, mas nenhuma palavra sai da minha boca, e mamãe pega a caixa. E eu quero ficar dormindo, mesmo sabendo que é uma bomba e já não estou mais sonhando, e se eu estivesse sonhando a bomba estaria explodindo agora. E agora que já é tarde demais minha voz sairia alta.
"Abdul." Alguém está sacudindo meu ombro. Rita. Eu aperto meus olhos fechados porque quando abrir eles, quando esticar minha cabeça pra fora das cobertas, minha mãe estará morta e hoje é seu enterro. "Abdul." A Rita sacode meu ombro outra vez. Eu tento voltar para as músicas, as pessoas dançando, e nossa casa cheirando a lasanha outra vez, mas não consigo. "Nã-não", digo pra Rita. "Mais cinco minutos", ela diz. A música agora acabou. Tem tubos claros de plástico enfiados no nariz da minha mãe, eles saem do nariz dela e estão presos com fita no lado do rosto, e vão subindo até uma bolsa clara de plástico pendurada acima da cabeça dela. Outro tubo está enfiado na garganta, com fita adesiva em volta. As mãos dela também estão com tubos enfiados e estão todas inchadas. A máquina está fazendo uuuush-rãaa uush-rãaaa uush-rãaa uush. O doutor veio da África. Às vezes, ele fala comigo em francês e olha meu dever de casa. Ele conta piadas. Mas hoje não está contando. "Ela está se esforçando o melhor que pode para ficar aqui, homenzinho." Ele me levanta nos braços. "Mas Deus pode ter outros planos." Ele me passa pra Rita, mas a Rita é magrela, não consegue me segurar, me põe no chão. Ele sai, volta com um banquinho alto. "Pronto, sobe aqui." No corredor, a enfermeira diz: "Sinto muito mas a condição dela é crítica, absolutamente nenhuma visita exceto..." "Deixa entrar!", o doutor diz. Uma senhora branca e outra com trancinhas compridas entram e ficam paradas atrás da Rita ao pé da cama. Tenho medo de pegar na mão da mamãe com os tubos todos enfiados. Olho pro doutor, os olhos de sapo dele vermelhos, mas ele não vai chorar. Eu também num vou. Ele veio e pôs minha mão no ombro da mamãe. "Acorda, mamãe." Mas os olhos dela não abrem, ela não se mexe. Depois é como quando você abaixa o som da TV e pode ver as figuras se movendo mas não escuta o som. Fica tudo quieto. Mamãe tosse então assim ahh-ahh. A cabeça dela se ergue um pouco, mas nada de abrir os olhos, e então a cabeça dela tomba. "Ah meu deus!", a Rita diz. Então o quarto fica todo barulhento outra vez, enfermeira falando no corredor, máquina fazendo uuuush-rãaa uush-rãaaa uush, alguém deixando cair alguma coisa. O doutor me pega como se eu fosse um bebê e me carrega pra fora do quarto. Eu olho para trás pra porta fechando, a enfermeira está puxando os tubos das mãos da mamãe.
Sinto a Rita se sentando do lado da cama. Ela tá tentando puxar as cobertas. Eu puxo elas acima da minha cabeça. "Vamos, homenzinho, é hora de levantar! Vamos comer ovos e bacon, e eu deixo você tomar um pouco de café." Eu não quero levantar. "Vamos, liguei o aquecedor pra você e tudo. Vamos, levanta, vá fazer xixi, e depois volte, lave o rosto e escove os dentes. Vamos, Abdul!" Eu deixo ela puxar as cobertas, ela tem sorte por eu deixar porque sou muito forte. Pulo da cama, corro, a Rita abre a porta. "Rápido antes que alguém entre aí. Põe os chinelos! O chão deve estar nojento." Ponho meus chinelos e corro pelo corredor até o banheiro. Psssss, é bom fazer xixi. "Fecha a porta se for fazer o número dois." "Não vou." "Tem certeza?" "Não", eu digo, e fecho a porta, empurrando o pequeno ferrolho pelo anel pra trancar a porta. Faço cocô, dou descarga, abro a porta, e corro de volta pelo corredor. A Rita me passa uma toalha e aponta pra pia.
Isso é tudo que tem no quarto, realmente, uma cama e uma pia no canto. A Rita não tem geladeira, TV nem nada, mas eu prefiro ficar com ela do que com Rhonda ou qualquer outra das amigas da minha mãe. Gosto da Rita, ela é legal com crianças pequenas. Na verdade eu não sou mais uma criança pequena, estou com nove. Passo a toalha no rosto. A Rita vem, pega e molha ela, torce, passa de novo pra mim. "Passa nos olhos, toda essa ramela do sono, depois atrás das orelhas! Tira o pijama e lava o bumbum e debaixo do braço. Ouviu?" Balanço a cabeça, ela vai pelo corredor pro banheiro. O homem do quarto ao lado liga sua música. Tupac. A mulher da frente tá xingando em espanhol. Ela não tem filhos. A senhora do outro lado tem três. Eu só estou aqui faz uma semana. Desde que minha mãe morreu.
Atrás de mim na cama, Rita estendeu minha cueca e a meia. Eu gosto de Tupac, mas não tanto assim. O homem do quarto ao lado toca ele toda manhã. Rita diz que talvez ele só tenha esse, mas eu olhei pela porta dele uma vez, ele tem CDs enfileirados pelas paredes quase até o teto. Minha camisa branca com o terno preto que minha mãe comprou pra mim está pendurado no prego atrás da porta. Eu sei que todo mundo no meu quarteirão sente minha falta, meus amigos devem estar se perguntando onde eu estou. Eu me pergunto onde eu estou. Eu sei que minha mãe não está morta como eles estão falando porque converso com ela o tempo todo do mesmo jeito que sempre fiz. Mas sei que não vamos pra Cali, pra Disneylândia, como ela disse que a gente ia. Dois anos mais – Quando eu sair da escola, a gente vai pra Califórnia, pra Disneylândia! Onde é a Califórnia? Deixa de ser bobo, olha no mapa! Mas onde ela fica de verdade? Que que cê quer dizer, benzinho? No mapa ela é comprida e laranja, perto da água. Certo, ela fica na costa, como Nova York, mas na Costa Oeste. A gente tem que pegar um avião e voar por essa terra toda, ela balançou a mão, e então hã hã, Cali! Olha, põe aí: www.google.com, depois Disneylândia, Califórnia. Eu ponho, tem 1.560.000 resultados.
– Abdul!
– O quê?
– O quê? Com quem cê tá falando? E não fale "o quê" pra mim!
Põe essa roupa.
– Sim, tia Rita.
Do outro lado da janela tem um trem passando.
– Que trem é esse?
– Garoto, você faz mil perguntas por minuto, hein?
– Eu só quero saber, minha mãe diz que se você quer saber alguma coisa, pergunta.
– Claro, a tia Rita pede desculpa. – Tudo que tenho que fazer é mencionar minha mãe pra conseguir qualquer coisa que eu quero.
– Esse é o Metrô Norte indo lá pro interior até Scarsdale, White Plains e Bedford Hills. Vamos pegar o horário e ver todos os lugares por onde ele passa e vamos num passeio um dia se você quiser. OK?
– OK – eu digo.
– Agora, veste seu terno e põe um pouco de loção no rosto e nas mãos. Queremos ficar bonitos. – A Rita está pegando seu perfume e suas coisas, colocando na cabeça, debaixo dos braços, depois direto da garrafa atrás dos joelhos e na nuca. – Vem cá, vamos cheirar gostoso. – Eu vou até o lado da cama onde ela tá sentada. Todas as coisas dela tão no parapeito e na cadeira perto da janela. – Levanta os braços. – Ri e borrifa debaixo dos meus braços. – Sua mãe faz isso? – Eu sacudo a cabeça que não. – Bom, só por hoje – ela diz, então põe uma coisa de uma das garrafas atrás das minhas orelhas. Eu não me importo, cheira legal. Visto minhas roupas enquanto a Rita tá passando preto nos olhos. Olho pra ela por cima dos ombros quando ela levanta da cama e tira o roupão. Não é como as moças nas revistas. A Rita só parece uma moça de roupa de baixo, tipo qualquer uma. Mas quando coloca o vestido preto, que é todo brilhante e tem um franzido em volta do bumbum, fica linda. Agora tá fazendo a boca ficar vermelha. Eu gosto disso, minha mãe faz isso também às vezes.
– Pronto? – ela pergunta puxando o zíper do vestido.
Eu pego minha jaqueta de couro.
– Que bacana, sua mamãe comprou pra você? – a Rita pergunta sobre minha jaqueta.
– Hã hã.
– Então vamos tomar café e dizer tchau.